
“A outra margem” (MS), de Nathália Tereza, prêmio Abraccine de melhor curta
Por Rafael Carvalho*
Surpreender o público de um festival de cinema pode ser uma das melhores e principais intenções dos organizadores e equipe de seleção. É incrível como essa 48ª edição do Festival de Brasília esforçou-se para surpreender, mas num sentido oposto, enfraquecendo sua seleção competitiva de longas-metragens com filmes pouco inspirados.
Em tese, metade dos seis filmes apresentados no Cine Brasília (a contar: “A Família Dionti”, “Santoro – o homem e sua música” e “Prova de coragem”) deixaram muita gente intrigada do por quê de estarem ali em espaço privilegiado nesse que é um dos principais festivais de cinema brasileiro que temos, tradição solidificada que remonta há muito tempo, janela de fazer ver uma produção latente, relevante, sólida – e não estamos falando aqui de um período de crise no cenário atual da produção audiovisual brasileira.
Enquanto isso, a outra metade (“Para minha amada morta”, “Big Jato” e “Fome”) nos fornece substrato para discussão e debates frutíferos, sejam eles bons ou maus filmes, a depender da observação de cada um – cada vez mais penso nos problemas e fragilidades de “Fome”, mas é sem dúvidas um filme que me confronta com muitos elementos. Essa parece ser uma função importante de uma comissão de seleção: escolher com rigor obras que mobilizem, instiguem e provoquem. Há certamente uma pluralidade entre os filmes selecionados este ano, estética e tematicamente, mas isso não significa necessariamente que eles sejam fortes em conjunto – há os que se destacam em separado.
E se o festival foi tanto criticado em sua edição anterior por trazer um recorte de filmes muito próximos em termos de produção e pensamento de realização, agora é possível enxergar como, ainda que menos diversificado nesse sentido, por outro lado foi alto o nível de discussão e provocação suscitadas pelas obras.
Melhor sorte teve a seleção de curtas-metragens – sorte a nossa de poder presenciar a pulsão criativa da produção curtametragista brasileira atual, como tem sido possível observar também em vários outros festivais de cinema no país. Por isso, acho mais interessante usar este espaço para falar desses filmes, pequenas peças de força e afeto.
Entre as narrativas de gênero
Chama atenção que entre os curtas-metragens apresentados muitos deles pendiam para o cinema de gênero, o horror/suspense surgindo como principal ponto de atenção e construção narrativa, muito como reflexo do que uma nova geração de cineastas brasileiros tem feito, testado e investido nos últimos anos, em curtas e longas.

“À parte do inferno”, de Lucas Cassales
Filme carpentiano por excelência, “À Parte do Inferno”, de Raul Arthuso, tem muito de atmosférico. Apela mais pelo terror de situação, fazendo crescer um clima de pavor a partir de elementos que assim se apresentam – sendo os mendigos “zumbificados” que ameaçam invadir a casa de uma família de classe média uma das imagens mais aterrorizantes desse festival. Há algo de (anti)climático também em “O Sinaleiro”, de Daniel Augusto, filme que brinca mais com os elementos narrativos – som, montagem, fotografia – para nos fazer adentrar um universo sombrio, talvez suspenso na psicologia do personagem. Ele é um senhor de idade que controla a passagem de um trem, tão metódico quanto a estrutura narrativa em que ele está preso, o que guia a percepção do espectador a todo instante.
Ainda no campo do atmosférico, “Tarântula”, assinado por Aly Muritiba e Marja Calafange também se destaca, mas agora sob o viés de uma construção psicológica maior. Adentramos num casarão repleto de texturas sombrias e também na vida de uma família marcada pela ausência: da figura paterna, agora “substituída” por outra figura masculina; mas também há uma ausência clara, concreta, demarcada no próprio corpo, já que uma das filhas e o homem não possuem uma perna e um braço, respectivamente. O filme evolui do clima de tensão sombrio para a tensão sexual e descamba para o rito de vingança e crueldade, todo ele embalado pela atmosfera soturna de uma casa e de relações em ruínas. Daí que “O Corpo”, de Lucas Cassales, acrescenta também nessa mesma pegada a noção de crueldade, mas não como ato de vingança, mas antes como rito de passagem, como descoberta abrupta do mundo cruel dos adultos, através da perversão dos próprios pais.
Também perto do gênero fantástico, mas trabalhando em outra chave de apresentação, está o originalíssimo “Quintal”. Não só porque brinca magistralmente com as possibilidades do absurdo e do nonsense, misturado à comédia farsesca com timming mais que preciso, mas porque o diretor André Novais Oliveira dá um passo adiante e insere elementos novos e surpreendentes em um projeto de cinema que vem construindo ultimamente – abusando do tom cotidiano e familiar, pondo a si mesmo e seus familiares como suas próprias personas, porém sem abdicar do lado ficcional.
Próximo à comédia está ainda o representante brasiliense “Afonso é uma Brazza”, dirigido por Naji Sidki e James Gama. O filme vale mais pela apresentação original desse personagem incrível que é um diretor de cinema, rei do trash numa Brasília de outrora, que por muito tempo fez seus filmes na raça e na coragem, celebração mais do que bonita da força do fazer cinema.
Os lados do afeto
Um personagem incialmente duro, arredio, talvez detestável, um playboy que vaga de carro pelas ruas de alguma cidade do Mato Grosso. Ele vai se mostrar um romântico introspectivo, ainda que nunca abandone a máscara da dureza. Em “A outra margem”, a jovem diretora Nathália Tereza conduz com sensibilidade ímpar um filme que faz o protagonista dar voltas, estabelecer encontros, mas chegar ao mesmo ponto de partida melancólico. É mesmo um achado o grande coração com que esse filme, esse homem, é exposto.
Outro tipo de afeição está inscrito em “Cidade Nova”, de Diego Hoefel. A cidadezinha que ali havia agora foi coberta pelas águas de uma represa. O personagem que volta nada mais encontra de concreto, fica preso entre as memórias do que se teve e as ausências que agora marcam, ferem. Ainda que a abordagem seja curiosa, o filme só enfraquece porque insiste em só girar ao redor da dor e desilusão de um jovem perdido no tempo, solto no espaço.
Já em “Rapsódia para um homem negro” a relação de afeto entre dois irmãos fica evidenciada, porém ela é atravessada pela violência urbana, pela segregação social e penalização do negro no mundo de hoje. Gabriel Martins explora então, com a força do símbolo, o mito dos orixás para pensar uma relação fraterna, mas que também se abre para o confronto, Ogum e Oxóssi contra a opressão. Há quem sucumba diante da barbárie cotidiana e há quem pegue em armas para confrontá-la. E a questão que o filme nos deixa tem um traço de grande inquietação: até que ponto vingar-se do sistema é uma solução?
Em busca de uma expressão
Filmes como “História de uma pena”, de Leonardo Mouramateus, e “Command Action”, João Paulo Miranda Maria, talvez sejam os curtas dessa seleção mais interessados na construção narrativa, nas possibilidades de encenação que certos espaços e personagens oferecem. Do primeiro, o universo de jovens e sua relação escolar – ou mais profundamente com certas regras e imposições do mundo; no segundo, o ambiente de uma feira popular torna-se espaço de possíveis, as vozes que se cruzam para formar uma paisagem de possíveis. São filmes em que menos interessa o fio de história a ser contado e mais a maneira como se potencializam em imagens e sons, em escolhas de onde manter o olhar da câmera – seja naquele que ouve o discurso do outro, seja na boca que fala e grita para o mundo.
Tentativa de expressão também aparece lá em “Copyleft”, mas de forma bastante desordenada, com intuitos mesmo militantes. Trata-se de um filme que abraça uma série de recursos narrativos para falar da opressão social/sexual que muitos sofrem por não ter o direito de assumir uma postura íntegra enquanto gênero sexual que não seja a heteronormatividade. Falha principalmente por achar que um discurso necessário valida qualquer tipo de tradução narrativa que possa cabê-lo de alguma forma, ainda mais quando está em busca de imagens que se querem fortes.
* Rafael Carvalho é crítico do jornal A Tarde (BA), doutorando em Comunicação e Cultura Contemporâneas – UFBA, editor da
Moviola Digital (http://www.movioladigital.blogspot.com/) e membro do júri Abraccine no 48º Festivalde Brasília do Cinema Brasileiro.