O terror e seus símbolos

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“O Corpo” (RS), de Lucas Cassales

Por Ciro Inácio Marcondes*

Se houve uma tendência – discreta, mas presente – na 48ª edição do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, esta foi a de um recrudescimento do filme de gênero (da comédia romântica ao neo noir), e, mais especificamente, do filme de terror, que aponta para uma curiosa nova configuração de certo cinema brasileiro. Afinal, o Festival de Brasília é sempre lembrado por sua pegada mais autoral e experimental, reelaborando a cada ano a insígnia do “cinema de arte”, ressaltando uma curadoria rigorosa com a atualidade do próprio cinema (nem sempre vista nas telas…). O que estariam fazendo, portanto, nesta edição do festival, um punhado de filmes de terror (bastante “orgulhosos” do que são) que buscam, entre outras coisas, dialogar explicitamente com uma estética estrangeira, questionar as estruturas específicas do gênero em si e produzir efeitos de rigorosa artificialidade estética? Enfim, são filmes que dialogam muito dentro do circuito fechado da própria cultura do filme de gênero. Por que caíram em um Festival que supostamente privilegia a radicalidade individual das produções?

Arrisco dizer que a resposta esteja em duas frentes: primeiro, há a formação de cineastas que dominam tanto a cultura “de bordas” da história do cinema quanto o cânone mais conhecido. Assim, a história do cinema de terror deixa de ser marginalizada para se incorporar também a este cânone. Nomes como John Carpenter, George Romero e Dario Argento saem dos buracos onde viviam seus fãs radicais para circularem ao lado de Antonioni, Bergman ou Truffaut, sem prejuízo para qualquer dos lados. Isso não é exatamente novidade. Filmes como “Tio Boonmee, que pode recordar suas vidas passadas”, “O hospedeiro” e até “O som ao redor”, para citar três produções recentes, tiram proveito deste tipo de entrecruzamento e fazem uso instrumental da linguagem do terror para produzir um cinema fora de categorização.

Em segundo lugar, um fenômeno parece se repetir (mais uma vez): o cinema de gênero aparece como alicerce para a produção do cinema de vanguarda. Se o cinema de gênero, tradicional e “transparente” surge como um foco de luz (yang), o cinema afeito à experimentação é sua sombra (yin), e, naturalmente, um se alimenta do outro. Se nos anos 60 Rohmer e Truffaut falavam de westerns de Ford e suspenses de Hitchcock, hoje é inevitável que um cinema desafiador volte seu olhar para filmes de super-herói, ou a filmes de carro australianos ou ao terror italiano dos anos 70. O leque é enorme, e cada vez mais o sincretismo entre diferentes tipos de cultura cinematográfica produz a singularidade autoral. Como sabemos desde a época de “O Iluminado”, é revirando o gênero que o cinema produz sua dialética.

A 48ª edição do Festival de Brasília nos apresentou, portanto, quatro curtas-metragens bastante diferentes entre si, mas que compartilham a afecção pelo gênero do terror. Cada um deles, no entanto, vai singularizar sua proposta de terror a partir de uma visão poderosa a individual, fugindo dos clichês e buscando o sentido dos filmes para além de uma literariedade. Saem monstros, assassinatos e perseguições, entram ambiências, símbolos ocultos e hipóteses que não se fecham. O primeiro a ser apresentado foi o filme paulista “À parte do inferno”, de Raul Arthuso, cuja curiosa configuração remete a vários modelos de terror. Aqui, uma família de classe média (uma mãe solteira, seu amante e seu filho) é duplamente aterrorizada: primeiro por uma estranha mancha negra, viscosa e pulsante, que aparece atrás de um armário; e depois por uma horda de moradores de rua letárgicos, que buscam invadir a casa deles. De aspecto sombrio, ressaltando uma fotografia azulada e espectral, o filme não dá mais informações do que estas, e temos de nos contentar com poucas peças no quebra-cabeça. O horror (o sentimento sombrio do qual é constituído todo filme de terror) emerge do pânico urbano (ter sua casa invadida), dos signos estranhos evocados (a mancha), da solidão moderna (a mãe; o menino) e do inferno social (a infame associação entre crackeiros e zumbis). A despeito da produção cuidadosa e da boa direção, o filme recai na vala comum do terror oriental (com pitadas de brasilidade), mas segue esta diretriz de um cinema de terror contemporâneo: o assustador está em não aparar as arestas, em manter hipóteses abertas, em preservar o que é desconhecido.

“Tarântula” (PR), de Aly Muritiba e Marja Calafange

“Tarântula”, filme paranaense de Aly Muritiba e Marja Calafange, possui um roteiro mais fechado, muito mais bem “aparado” no sentido de propor uma estética unificada, mas também se resguarda em um horror de signos ocultos. Em uma velha casa (bem ao estilo “casa assombrada”, mérito da premiada – e afetada – direção de arte), uma mãe e duas filhas vivem uma vida atravessada por traumas que sugerem o substrato pesado que carrega o filme com horror. A filha mais nova não tem uma perna. E o amante da mãe não tem um braço. A prótese para os membros perdidos aparece como metáfora para as disfunções da própria família: as relações são artificiais, os afetos são sempre incompletos. Perfeitamente esquadrinhado em uma decupagem que privilegia estes signos (uma aranha, objetos religiosos, próteses, bonecas sinistras), e, a despeito de seu final um tanto grosseiro, “Tarântula” se utiliza desta lógica jungiana de que a história imaterial por trás dos signos é uma bagagem inevitável nas relações destes signos com o presente. Este olho de horror jungiano é algo comum a todos estes filmes, e, se “Tarântula”, dada a sua artificialidade, se parece bastante com um exercício de gênero, este exercício se dá por dentro de uma ótica que dialoga com horrores que vão além de uma tradição meramente cinematográfica.

“O Sinaleiro”, filme paulista de Daniel Augusto, vai levar estas relações a extremos. Inspirado em Dickens, o curta traz à tona o cotidiano sombrio de um velho sinaleiro que habita uma estação ferroviária abandonada. À sua volta, encontramos apenas coisas escabrosas: potes com vermes e animais peçonhentos, uma goteira que nunca para, anotações febris, o barulho dos trens passando por cima. Sem falas, aliado a uma montagem cíclica atenta a detalhes mínimos (como se Sergio Leone filmasse o terror, enfim), o ambiente deste curta é completamente paranoico e desapegado de referências que impulsionem a história para frente. Na verdade, não há história a ser contada, apenas a construção técnica do ambiente de terror absoluto a partir do engenho rigoroso da linguagem cinematográfica. Se o filme parece frio ou virtuoso demais, talvez seja porque Daniel Augusto resolveu extrair do terror seu conteúdo interno para manter apenas a sugestão. E um filme feito apenas de sugestão talvez seja apenas a sugestão de um filme, afinal.

Por fim, “O Corpo”, de Lucas Cassales, do Rio Grande do Sul, finaliza a pequena jornada que o 48º Festival de Brasília fez por esta nova aproximação ao terror com uma narrativa assombrosa e inquietante. Em uma fazenda no interior, um garoto, filho de um pai rigoroso e uma mãe servil, encontra no mato o corpo catatônico de uma jovem mulher. Eles a levam para casa e passam a tratá-la, sempre sob os auspícios de que algo muito estranho está ocorrendo, até que, em uma sequência aterradora, o menino presencia a macabra experiência que norteia os demais personagens. “O Corpo” possui uma produção mais naturalista, e os signos trabalhados aqui, como nos outros filmes, aparecem na razão da incompletude, mas são de natureza mais freudiana: morte (na imagem do menino matando a galinha), sexo (no corpo da jovem catatônica), violência (presente no imaginário dos outros dois signos). Talvez o filme apele para visões explícitas demais, que de qualquer forma estariam conformes ao gênero do terror. Fazendo isso Lucas Cassales se arrisca a perder as sugestões de seus signos, já enfraquecidos por serem um tanto redundantes. Mesmo assim, o curta ganha força na direção segura e em atuações dedicadas, que transformam imagens chocantes em elaborações surrealistas, elaborando desde um pornô extremo até filmes de zumbis.

Os quatro filmes pensam a sugestão como alicerce principal para a construção do sentimento do horror. Isso não está fora do terror clássico. “Alien, o oitavo passageiro”, por exemplo, trabalha o jogo da ausência/presença do monstro como suporte para o desenvolvimento da sugestão. A diferença está na superfície e nas camadas profundas destes filmes. Podemos fazer todo tipo de leitura psicanalítica ou simbólica de Alien, mas a leitura primária está sempre na superfície do filme: eis o monstro, quem sobrevive, como o monstro morre, etc. Nestes filmes deste novo terror brasileiro, a superfície em si é turva. A sugestão não serve ao plot. A superfície do filme é um amontoado de signos que, operando em uma dialética mais ou menos soviética, criam novas significações possíveis a partir de recombinações operadas pela estrutura individual de cada curta. “Alien” pode ser lido como um tipo de metáfora, mas a diferença é que estes filmes não podem ser lidos de qualquer outra forma que não a metáfora.

Assim, este cinema de terror jungiano remete (ou quer remeter) diretamente a um imaginário profundo, a uma associação livre de ideias enraizadas em cada espectador. Sua estrutura se assemelha mais a um jogo de tarô do que a um romance. De certa forma, o gênero do terror, tão engolfado historicamente em seus atavismos, emerge novamente aqui dialogando com as vanguardas heroicas. Este cinema não deixa de ter seu coeficiente de dadaísmo ou surrealismo. Um terceiro olho se abre sobre estas produções. Não deixa de ser um novo – e horripilante – despertar.

* Ciro Inácio Marcondes é professor e crítico de cinema e histórias em quadrinhos, além de pesquisador pela Universidade de Brasília. Edita o site www.raiolaser.net; membro do júri Abraccine no 48º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro

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