Lucas Salgado*
Olhar de Cinema. O nome do evento parece escolhido por acaso, talvez numa tentativa de se fugir do lugar comum que é o uso de termos como “mostra” ou “festival”. Mas este não é o caso. Olhar está diretamente ligado a proposta de curadoria e engloba a mostra competitiva de curtas e longas metragens, a retrospectiva, os clássicos, a mostra Foco e ainda exibições especiais. Há uma grande coerência entre os títulos exibidos em toda vasta programação.
É fácil dizer que o Olhar de Cinema é um festival de filmes de arte, de proposta alternativa, quase uma derivação da Mostra de Tiradentes. Há semelhanças, é claro, mas há uma linha curatorial bem precisa que busca retratar, em sua maioria, de um tipo de cinematografia que podemos chamar de Cinema-observação.
Se através do olhar observamos nosso dia a dia, através do Olhar de Cinema descobrimos costumes de diferentes países e filmografias, realidades e culturas diferentes das nossas, situações duras, leves e por vezes quase alienígenas, com personagens e personas especiais ou ordinárias. De certa forma, estamos diante de uma janela apontando para o diferente.
Na maioria das obras presentes na seleção, temos a câmera assumindo o papel do olhar do espectador. Se pagarmos a mostra competitiva, cinco dos dez filmes são puramente observativos. Eleito o melhor filme pelo júri oficial, o chileno “O Vento Sabe que Volta à Casa” retrata um documentarista visitando uma afastada ilha chilena com o objetivo de realizar uma pesquisa para a produção de um longa. Aos poucos, somos apresentador ao lugar e à sua comunidade, e expostos aos seus costumes, tabus e preconceitos. Premiado pelo júri Abraccine, o chinês “Um Outro Ano” retrata 13 meses na vida de uma família chinesa, através de planos longos que registram 13 jantares (um por mês). Ao observar aquela família – e aquele cenário – por tanto tempo, o público acaba entrando no dia a dia daquelas pessoas e realmente se envolvendo com aquela realidade.
“Maestá, a Paixão de Cristo”, “Gulîstan, Terra de Rosas” e “Irmãos da Noite” são os demais longas que valorizam puramente o olhar. Mas há outros na seleção oficial que oferecem tal perspectiva, como a ficção “A Última Terra”, que retrata um casal de terceira idade que mora em uma área rural reclusa no Paraguai. A esposa está em seus últimos dias, enquanto que o homem inicia os preparativos para velar sua amada. Pausadamente, o filme observa com muita paciência as atitudes do senhor, transmitindo sua luta e sua angústia.
Fora da mostra competitiva, também nos deparamos com obras puramente observativas, como é o caso do documentário “Anna”. Restaurado em 2011 após passar 30 anos perdido, o longa de 1975 retrata a rotina da jovem de 16 anos Anna. Grávida, ela não tem onde ficar. Pula de casa em casa de amigos, até que é acolhida pelos diretores do filme, Alberto Grifi e Massimo Sarchielli. Num exercício polêmico, em que a intimidade entre entrevistador e entrevistado rompe algumas barreiras, a obra oferece uma perspectiva rara sobre o cenário cultural, político e social da Itália dos anos 70. O longa, de quase quatro horas de duração, é formado de longas tomadas de conversas/entrevistas entre a jovem, os cineastas e seus ciclos de amizade. O espectador é tão envolvido pela história e pela realidade opressora e ao mesmo tempo exótica, que a longa duração pouco interfere na experiência.
Tudo que vem sendo apontado fica ainda mais claro nas mostras Outros Olhares, de longas e curtas. O nacional “Carnívoras”, o americano “Ator Martinez” e o austríaco “Homo Sapiens” são alguns dos destaques desta seleção, oferecendo visões de mundo diferentes e reflexões sobre o homem, suas atividades e seu bem-estar.
Ainda que possa apontar para uma certa irregularidade – em termos qualitativos – da mostra competitiva, é inegável que o Olhar de Cinema tem uma cara. E esta deve ser valorizada, pois faz do evento uma experiência especial em um cenário de centenas de festivais cinematográficos no Brasil. Agora, é esperar pela edição 2017.
* Lucas Salgado é crítico do portal Adoro Cinema, fundador do site Confraria de Cinema e coordenador de comunicação do Festival CineMúsica de Conservatória; membro do júri Abraccine no 5º Olhar de Cinema de Curitiba.