Carlos Heli de Almeida*
Eles vivem em países antagônicos, com profundas diferenças políticas e ideológicas, mas são a prova viva de que a convivência é possível e não deveria ser decidida dentro de gabinetes fechados. De volta ao Brasil como convidados da 36ª Mostra de São Paulo, de 2012, o israelense Amos Gitai e o iraniano Abbas Kiarostami aproveitam a coincidência de agendas para, reunidos para esta reportagem, renovar os laços de amizade e a admiração mútua que nutrem um pelo outro há quase 20 anos.
“Amos faz filmes sobre a vida, com os quais me identifico muito”, diz Kiarostami, por trás dos indefectíveis óculos escuros, sobre o autor de ‘O dia do perdão’ (2000), após um almoço com o amigo, na capital paulista. “Não sinto afinidade por muitos diretores conterrâneos, o que reforça a ideia de que não é a língua, a religião ou a cultura que diferenciam as pessoas”.
“O que gosto nos filmes do Abbas é o ritmo. Em cinema, por pressão do mercado, tende-se a acelerar o ritmo da narrativa. O que o cinema de Abbas diz é: ‘Pare! Observe os detalhes, eles funcionam como pequenas metáforas’”, devolve Gitai para o realizador de “Gosto de cereja” (1997). “Para Abbas, o espectador não é um consumidor, mas um intérprete. Toda grande obra de arte abre espaço à interpretação.”
Premiados em grandes festivais internacionais, respeitados por críticos e admirados por cinéfilos mundo afora, os dois cineastas ainda travam batalhas para serem aceitos em casa. Gitai já irritou muito os israelenses mais conservadores, com revisões de temas caros ao país, como o extremismo religioso (“Kadosh”, 1999), a guerra contra a Síria e o Egito (“O dia do perdão”) e os sangrentos bastidores da criação do estado de Israel (“Kedma”, 2002).
“Como cidadão, obviamente tenho opiniões muito fortes sobre o país, que amo profundamente. Nem sempre sou obrigado a concordar com o tipo de política, interna ou externa, praticada pelo governo israelense”, justifica Gitai, arquiteto de formação, que descobriu a inclinação para o cinema depois que seu helicóptero foi abatido por soldados sírios durante a Guerra do Yom Kippur, em 1973. “Vi um companheiro morrer em minhas mãos. Decidi que não iria passar o resto da minha vida desenhando hotéis de luxo.”
Kiarostami, por sua vez, insiste em contar histórias que oferecem uma visão poética da sociedade iraniana, há mais de três décadas vivendo enclausurada pelo obscurantismo do regime dos aiatolás. Palma de Ouro em Cannes, “Gosto de cereja”, por exemplo, causou alvoroço entre os iranianos por sugerir uma aproximação com o tema suicídio. Suas produções estão banidas das telas do país há 15 anos.
Os filmes do diretor feitos depois da posse do presidente linha-dura Mahmoud Ahmadinejad foram rodados fora do país, com atores estrangeiros: “Cópia fiel” (2010), laureado em Cannes com o prêmio de melhor atriz (Juliette Binoche), na Itália; e “Um alguém apaixonado” (2012), atração desta edição da Mostra, no Japão.
“A restrição a meus filmes no Irã não é de ordem política, é uma questão de manter a minha independência artística. Conseguiria permissão para fazer um filme quando bem entendesse, mas as autoridades sempre acabam interferindo nos meus projetos, porque acham que não são trágicos o suficiente. Prefiro fazer o filme que imaginei, e encontro essa liberdade fora do país. Mesmo que custando o banimento deles no Irã”, explica Kiarostami.
Segundo o iraniano, a mudança de paisagem e de língua não alterou sua vocação humanista. Um alguém apaixonado descreve a curiosa relação entre um velho professor e uma jovem universitária que trabalha como garota de programa nos bares elegantes de Tóquio. Como em trabalhos anteriores, Kiarostami volta a brincar com questões como identidade e a percepção que temos um dos outros.
“No mundo de hoje, como é possível falar sobre pessoas e não ser político?”, pergunta. “Não há um bom filme que não seja político.”
Gitai concorda. Diz que não é preciso ser abertamente político para falar dos rumos da sociedade moderna. Cita como exemplo os novos filmes que trouxe para a Mostra, Carmel e Canção para o meu pai. O primeiro é um documentário inspirado nas cartas deixadas pela mãe do diretor, filha de judeus socialistas russos, que foram para Israel com a utopia de construir uma sociedade igualitária. O segundo é um tributo a Munio Weinraub, pai do cineasta, que estudou na escola de arquitetura de Bauhaus e foi expulso da Alemanha pelo governo nazista de Hitler.
“Em comparação com a situação que vivemos hoje, quando falo sobre os sonhos de meus avós de construir um mundo melhor, ou de meu pai, que desejava fazer projetos arrojados de moradia para os operários, estou sendo crítico também. Não se pode exigir que todos os cineastas façam filmes combativos o tempo inteiro, porque vivemos em circunstâncias diferentes. Para usar um termo de arquitetura, temos que construir nossas pequenas pontes de diálogo artístico, proteger esses canais abertos nessa tempestade de estupidez e ódio que vivemos”, argumenta Gitai.
*jornalista e crítico de cinema; texto originalmente publicado no jornal O Globo de 28 de outubro de 2012.