“Gosto de cereja”: quando viver é uma escolha

gosto de cereja

Felipe Moraes*

Um homem de semblante angustiado dirige por ruas poeirentas de Teerã em busca de ajuda. Em troca, uma grana equivalente a meses de esforço de um trabalhador comum. Ele parece bem de vida: conduz uma Range Rover e veste trajes modestos, mas asseados. Aqui e ali, para o veículo e interpela homens da região, vários deles envolvidos numa enorme escavação – por isso o ar carregado. Ele precisa de alguém que o enterre numa cova aberta nas proximidades, sob uma cerejeira. Este homem pretende cometer suicídio.

Poderia ser um filme pesado, mórbido, cínico. Mas este é “Gosto de cereja” (1997), a obra mais popular de Abbas Kiarostami. Com o longa-metragem, o diretor venceu a Palma de Ouro no Festival de Cannes e consolidou um processo de reconhecimento internacional iniciado dez anos antes por “Onde fica a casa do meu amigo?” (1987).

Seus filmes ganharam popularidade, começaram a circular ainda mais. Cada cinéfilo que se preze tem o seu Kiarostami favorito – o autor deste texto elege “Um alguém apaixonado” (2012), derradeiro longa – ou lembra bem o momento em que descobriu o cinema do iraniano. Sobraram relatos assim nas redes sociais quando da morte do cineasta.

Voltando a Gosto de cereja. O senhor Badii (Homayoun Ershadi) não é um suicida de filme de suspense, ameaçando se jogar de um prédio no centro da cidade. Ele quer uma morte comum, com enterro e testemunha. Só precisa que alguém jogue 20 pás de terra sobre seu corpo. Ele inclusive já abriu a cova e ali se deitará durante a madrugada, após tomar uma overdose de remédios para dormir. Não queira saber o motivo da morte abreviada. Ele não diz.

Todos os elementos de um filme de Kiarostami estão presentes em “Gosto de cereja”. A transitoriedade do personagem principal, que encontra três postulantes ao trabalho de “coveiro particular” – um jovem soldado e um seminarista declinam; um taxidermista aceita. Os longos e pensativos planos abertos a emoldurar terra, céu e cidade. A encenação que problematiza a nossa relação com a realidade (e com um cinema dito realista).

Kiarostami alcança uma profundidade única sobre as questões humanas mais fundamentais (morte, memória, destino) por meio de uma poesia banal, cotidiana, espontânea, mundana: uma narrativa sobre coisas simples por personagens simples.

Lá pelas tantas, Badii já tentou contratar o jovem soldado e o seminarista afegão. Numa sequência de imagens alegóricas, o diretor fala sobre mortalidade a partir de sombras e toneladas de terra. A jornada do homem que quer desistir da vida finalmente ganha uma dimensão filosófica e física.

Numa elipse abrupta, estamos novamente na Range Rover de Badii. Agora, ele não parece tão falante quanto antes, quando metralhava perguntas para os passageiros. Desta vez, o “candidato” é Bagheri, um taxidermista que trabalha num museu de Teerã. Ele desata a falar sobre as escolhas que a vida nos dá. Mas garante a Badii: estará lá cedinho para enterrá-lo – ou, na hipótese por ele defendida, tirá-lo da cova arrependido e com vida.

Ao contrário de tantos cineastas contemporâneos afetados e arrogantes, Kiarostami revela seu interesse pela naturalidade de um gesto de maneiras tão naturais quanto surpreendentes e genuinamente humanas. Num dos planos mais desconcertantes de “Gosto de cereja”, Badii acaba de deixar Bagheri no museu. Estava de saída, mas voltou ao lugar para reforçar o pedido ao novo amigo.

De volta ao carro, topa com duas pessoas na calçada. Uma jovem vai em sua direção e pede que tire uma foto ao lado do namorado, irmão ou amigo. Ele clica. Devolve a câmera. E segue.

Horas depois, ele passa em casa, toma os remédios. Pega um táxi, chega à cova vizinha da cerejeira. Deita-se sob raios e trovões, uma tempestade em gestação. Escuridão total. E então, Kiarostami e equipe são vistos em imagens de VHS, num making of sobre as filmagens de Gosto de cereja. Porque no cinema, a morte também pode ser uma mera ilusão.

* jornalista e crítico de cinema; texto originalmente publicado originalmente no portal Metrópoles em 6 de julho de 2016, quando da morte de Kiarostami.

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