O mundo vertiginoso de Abbas Kiarostami

16134356José Geraldo Couto*

Quando o cineasta iraniano Abbas Kiarostami surgiu aos olhos do mundo com filmes como “Onde fica a casa do meu amigo?” (1987) e “Close-up” (1990), houve quem se apressasse em dizer que seu sucesso no circuito dos festivais se devia a uma curiosidade pelo exotismo. O tempo provou que esses críticos estavam errados. Nas décadas que se seguiram, Kiarostami construiu uma das filmografias mais sólidas e originais de nossa época.

No primeiro filme realizado por Kiarostami, o curta “O pão e o beco” (1970), um menino está voltando para casa com um pão quando, numa ruela, depara-se com um cachorro hostil e fica com medo de passar por ele. Dessa situação mínima o diretor constrói um mundo. Medo, imaginação, sagacidade, tudo pulsa naqueles poucos minutos, naqueles poucos metros quadrados.

Talvez soasse interessante dizer que todo o cinema de Kiarostami está contido em embrião nesse curta, mas seria falso. Se é verdade que esses dilemas miúdos, essas minúsculas aventuras envolvendo crianças, repetem-se em filmes como “Onde fica a casa do meu amigo?” e no roteiro de Kiarostami para o longa “O balão branco” (1995), de Jafar Panahi, o fato é que a obra do diretor se expandiu para outros temas, caminhos, cenários e latitudes.

Um eixo temático constante, a partir de “Close-up” (que reencena a incrível história do homem preso ao se passar pelo cineasta Mohsen Makhmalbaf para extorquir uma família), é do embaralhamento entre realidade e representação.

Em “Através das oliveiras” (1994), durante a realização de um filme numa região devastada por um terremoto, um ator não profissional se apaixona por uma atriz e entremeia suas falas ficcionais com declarações de amor à moça.

Em “E a vida continua” (1992), um cineasta e seu filho tentam encontrar, também numa região destruída, os moradores locais que participaram, anos antes, de uma filmagem – e fica evidente que a produção em questão era “Onde fica a casa do meu amigo?”, do próprio Kiarostami, fechando assim um circuito subterrâneo de referências.

Ficção e identidade – O jogo realidade/ficção se desdobra e se refina em outro tópico, o da construção (e esfacelamento) da identidade pessoal, explorado vertiginosamente na fase internacional do cineasta: “Cópia fiel” (2010), rodado na Itália, e “Um alguém apaixonado” (2012), no Japão.

A clareza de propósitos, o talento criativo e o domínio absoluto de seus meios permitem a Kiarostami criar obras marcantes tanto num contexto de grande produção como nas situações mais precárias. Um exemplo de despojamento material e estético é o extraordinário “Dez” (2002), que se resume a dez viagens de carro pela cidade de Teerã, nas quais a câmera, sempre dentro do automóvel, registra os diálogos entre a mulher ao volante e seu filho, ou entre ela e outras mulheres. A família, a condição feminina, as transformações do Irã e do mundo, tudo trafega por essas conversas. O dispositivo narrativo é semelhante ao de “Gosto de cereja”, realizado cinco anos antes, no qual um homem, também dentro de um carro, procura alguém que aceite matá-lo e enterrá-lo em troca de dinheiro.

Kiarostami, que veio algumas vezes ao Brasil, tinha um projeto (referido por Leon Cakoff e Renata Almeida no longa de episódios “Bem-vindo a São Paulo”): acompanhar com sua câmera uma menina de rua que ele viu uma vez na avenida Paulista, fuçando lixeiras, abordando transeuntes, tomando sorvete, cantando, dançando. O filme seria apenas isso: um longo travelling do início ao fim da avenida, observando essa vida à margem, despojada, solta, imprevisível. Mesmo que não venha a realizá-lo, o projeto permanece como uma síntese possível de sua grande arte.

* José Geraldo Couto é jornalista, tradutor e crítico de cinema; texto originalmente publicado em abril de 2016 no Blog do IMS, por ocasião da abertura da mostra “Um filme, cem histórias: Abbas Kiarostami”.

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