Andrea Tonacci – O homem é um ser que caminha

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Rodrigo Grota*

“Agora.. por quê a poesia?
Porque a poesia te joga brechas, te dá espaços.
Ela não te dá certezas, ela não te dá pedras..
Ela te dá o espaço entre as pedras.”

*

Quando ouvimos Billie Holiday não sentimos apenas a sua voz, o seu ritmo, o arranjo dos músicos – há toda uma alma ali, uma extensão… O seu olhar, as suas pausas, a sua recusa em retornar ao palco. Tudo é tão verdadeiro ali porque tudo vem de dentro.

No cinema encontramos poucos realizadores com esse perfil. Há Tarkovski e seus planos ocultos, Kurosawa e seus desenhos e sombras, Godard e a tendência ao desvio.. e há, sobretudo, Roberto Rosselini: o cinema como um ato moral, um olhar sobre as coisas.

No Brasil tivemos realizadores assim também – são poucos: Mário Peixoto é o primeiro.

Andrea Tonacci possivelmente o último.

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Minha relação com Andrea Tonacci começou em 2004. Eu já tinha ouvido falar dele, do Cinema Marginal.., mas até então nunca tinha visto nenhum filme, nenhum frame sequer. Até que a imagem de um carro pegando fogo na sala chamou minha atenção – acompanhei aqueles planos longos em preto-e-branco e eis que o filme logo chegou ao seu fim. Minha relação com o diretor já começava invertida: após um fim, agora precisava encontrar um começo.
“Bang Bang” era o filme em questão. Estava passando no Canal Brasil e naquela época não havia como locá-lo ou encontrá-lo na internet. Corri e consegui uma cópia em DVD – assisti ao filme e surpresa – o DVD em questão travava nas sequências finais – bem, agora eu poderia ter sempre um começo e apenas relembrar o fim.

Conto isso porque se relacionar com Andrea Tonacci é sempre essa condição mista, incompleta, invertida. Quando ele fala, ele não apenas está comentando o tema em questão – há sempre um olhar original, uma perspectiva que desmonta o seu percurso. Quando ele ouve, a concentração é maior ainda: pois sente-se que ele realmente está ali, ouvindo, atento a cada palavra e a cada sentimento impreciso.

Nossa relação se iniciou pra valer em 2006: convidei o Serras da Desordem para ser exibido na então 8a Mostra Londrina de Cinema. Uma avalanche – não sabia muito bem o que estava vendo, mas sentia que era algo grande. Em 2008 a Kinoarte propôs a Tonacci uma Oficina de Direção em Londrina – uma espécie de breve relato sobre a sua visão de mundo. Ele inicialmente recusou o convite, mas após nossa insistência acabou aceitando. Foram dois dias inesquecíveis: mais do que falar sobre Direção, ele falou sobre sua vida, sonhos, desejos, vontade – expressou seu olhar e todo um universo de ideias e postura.
A partir de então comecei a pensar na possibilidade de fazer um retrato do Tonacci para a série Retratos Brasileiros do Canal Brasil, justamente o canal que me havia apresentado “Bang Bang”. Fiquei com a ideia na cabeça por dois anos até que decidi manifestá-la. O Canal Brasil topou: fiquei animado, mas deveria ainda falar com Tonacci. Ele disse “não”. Claro. E depois o Canal Brasil ainda me avisou que possivelmente outro realizador iria dirigir esse programa. Fiquei desanimado e permaneci em silêncio. Passaram-se alguns dias e o Canal Brasil voltou atrás – deu o sinal verde. Conversei com Tonacci e expliquei que não haveria perguntas, entrevistas, relatos – nada: apenas uma aproximação ao seu universo, sua linguagem. Incluindo filmes completos e incompletos. Fomos ver Filme Socialismo, do Godard, na Mostra do Cakoff. Após o filme ficamos praticamente em silêncio – o quê comentar após um filme como esse? Ele concordou com o Retrato, mas não daria entrevistas – aprendi mais uma vez que, assim como a plateia diante de Billie Holiday, o cinema está no silêncio.

***

“Nos espaços vagos é que me sinto confortável..
O que eu ignoro é o que me move..
A questão não é dominar a técnica. É deixar a forma ser o que ela é..”

Lester Young não é tão conhecido como Charlie Parker, Miles Davis e Chet Baker – mas ele era o cara – os três concordariam. A historiografia do cinema brasileiro também sempre se apoiou em falsas dicotomias: por um tempo houve apenas Mário Peixoto e Humberto Mauro, Lima Barreto e Alberto Cavalcanti, Glauber Rocha e Rogério Sganzerla… Não havia (como ainda não há) espaço para singularidades, para uma voz mais discreta, para uma trajetória particular. Ou o cineasta pertence a um grupo ou está isolado. Ou renega seu ponto de vista mais íntimo ou permanece sem filmar. Tonacci, no entanto, permaneceu distante dos grandes grupos e sempre filmou. Assim como Luiz Rosemberg Filho, aliás, outro grande nome do cinema – seu amigo até hoje.

Nascido a 1º de setembro de 1944 em Roma, na Itália, em plena Segunda Grande Guerra, Andrea veio logo cedo para o Brasil, em 1953. Ainda nos anos 1950, com a câmera 8mm do seu pai, fez as suas primeiras imagens: registros de família, passeios pela Europa, EUA, a casa de praia no Guarujá – filmes curtos rodados em 8mm que ele ainda mantém em sua casa, porém sem condições de projeção. Percebe-se ali o primeiro desejo de narrativa, os movimentos livres – a câmera afirmando uma primeira identidade – o cinema como possibilidade de conhecimento.

Criado em uma família classe média alta, Andrea cursou entre 1963 e 1967 o Curso de Engenharia Civil e Arquitetura na Universidade do Mackenzie, em São Paulo. Não concluiu o curso, mas foi ali que começou a sua amizade com Sganzerla, outro jovem estudante, relação que resultaria na produção de três filmes em 1965: Documentário (dirigido por Rogério), O Pedestre (dir. Otoniel Santos Pereira) e Olho por Olho, dirigido pelo próprio Tonacci. Sganzerla montou os três filmes, enquanto Tonacci os fotografou. A relação com o cinema começava a se concretizar – Tonacci já havia iniciado alguns curtas de ficção, mas até o momento dividia sua atenção com a literatura e as artes plásticas: aos 20 anos participara de um Curso de Gravura em Metal e Litografia na Fundação Armando Álvares Penteado (Faap). Seus desenhos, pinturas e gravuras dessa época mostram que um outro caminho seria possível – fã de Van Gogh e Edward Hopper, iniciava ali uma certa poética visual – espaço muito bem construído como vemos em “Bang Bang” e “Serras da Desordem”.

Sua primeira experiência com um grande ator foi em 1968: “Bla Bla Bla”, premiado como Melhor Curta do Festival de Brasília, era estrelado por Paulo Gracindo. De teor crítico ao regime militar, o filme obrigou Tonacci a sair da casa dos pais em São Paulo e passar um tempo no Rio de Janeiro. Se em Olho por Olho há um desejo de cinema, de captar o mundo em movimento, seguir um rosto – em Bla Bla Bla a postura é explosiva: a palavra não tem mais sentido – o mundo está esvaziado – o que resta é lamento e fragmentação.

O ápice dessa visão corrosiva vem em 1970, em 11 dias de filmagem e sob um orçamento mínimo inicialmente aprovado para um curta-metragem. “Bang Bang” surge assim – a partir da leitura de um texto policial, uma vaga lembrança de Carlitos e uma equipe reduzida (“seis, sete pessoas”) a rodar em Belo Horizonte aquele que seria considerado um dos cinco filmes mais importantes do Cinema Brasileiro. A história é intraduzível, o elenco é liderado por um Paulo Cesar Pereio que a partir desse filme assume uma persona de rebelde, marginal. Os planos são longos – praticamente um filme todo constituído de planos-sequências. O roteiro, até então meticulosamente concebido, havia ajudado Tonacci a se aproximar de um sentimento, a determinar os tempos de cada cena. No set, no entanto, a linguagem veio como decorrência das condições de produção. “Não havia como filmar o roteiro decupado. Não tínhamos tempo, nem grana”. O som se tornou uma imagem a mais no filme – nunca um comentário da imagem.

Apesar de toda a inventividade, o filme não vingou nos cinemas, permanecendo em cartaz apenas por uma semana no extinto Belas Artes, na Consolação. Só a partir de uma exibição privada para o jornalista Novais Teixeira, então correspondente de O Estado de S.Paulo em Paris, que “Bang Bang” ganhou sobrevida e foi selecionado para a Quinzena dos Realizadores, em Cannes, em 1971.

Vem dessa época a aproximação a uma obra que reflete e é refletida pelos filmes de Tonacci: A Invenção de Morel, do argentino Adolfo Bioy-Casares. Frases como: “não o sol; a aparência do sol”, “Ia dizer que aí se manifestavam os perigos da criação, a dificuldade de possuir diversas consciências, equilibradamente, simultaneamente”, “Em um lugar ou outro estarão, sem dúvida, a imagem, o contato, a voz dos que já não vivem (nada se perde)…”, “a influência do futuro sobre o passado” – essas afirmações, pronunciadas pelos personagens de Bioy Casares, são também do cineasta Tonacci, para quem o cinema “não é uma carreira, é sua vida!”; o imaginário tem o poder de mudar o mundo, e não apenas de condicioná-lo; um filme deve registrar não as coisas, e sim, “as sombras das coisas”.

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“Cada resposta é útil para fazer emergir um outra pergunta.
Cada etapa é um caminho em direção à definição dessa ideia.
Se a imagem é uma dúvida?”.

Essa visão próxima a Casares foi se consolidando principalmente a partir de um documentário rodado em 1975 e do qual até hoje o cineasta não tem os plenos direitos de exibição. Pioneiro na abordagem (sem entrevistas) e na técnica (rodado inicialmente em vídeo com posterior transferência para película), “Jouez Encore, Payez Encore” (Interprete Mais, Pague Mais) mostra os bastidores de uma montagem produzida por Ruth Escobar a partir dos Autos Sacramentais, de Calderón de la Barca. A montagem é do lendário Victor Garcia, diretor argentino célebre por suas montagens nos anos 1970. No elenco figuras ilustres do teatro brasileiro como Sérgio Britto e Antonio Pitanga. Tonacci, com sua câmera praticamente invisível e sempre móvel, revela os bastidores dos ensaios permitindo aos atores desempenharem um triplo papel – um personagem para a peça, um personagem para a câmera, e o personagem deles mesmos. A câmera, mais do que revelar as máscaras, se torna um espelho. Bioy Casares novamente se torna palpável: “Pode nos mostrar essas primeiras imagens? Se vocês quiserem, claro que posso; mas aviso que há fantasmas ligeiramente monstruosos”.

Ao longo dos anos 1970, 80 e 90, Tonacci produziu vídeos para projetos entre comunidades indígenas, dirigiu documentários sobre esta temática – sendo os mais notáveis “Conversas no Maranhão” (1977) e “Os Arara” (1980), além de constituir um imenso material audiovisual até hoje não catalogado. Entre as raridades estão shows dos Novos Baianos, Hermeto Pascoal, Miles Davis.. Material filmado em um formato de vídeo dos anos 1970 que hoje é de difícil acesso.

Sua aproximação com o universo indígena o levou a permanecer por oito meses diretos na floresta – uma experiência deflagradora, que não só potencializou sua acuidade visual, mas expandiu sua percepção de mundo. Seu filme posterior seria resultado dessa convivência tão próxima com o outro – o índio, “uma outra humanidade”. Assim como Pereio em Bang Bang, Carapiru é também Andrea Tonacci: “o eu é um outro” (Rimbaud). Rodado nos mais variados suportes, em locais distantes e mesclando atores e não-atores, “Serras da Desordem” é a maior odisseia brasileira desde “A Idade da Terra” (1981), de Glauber Rocha. Não se trata apenas de um filme – é um jornada. O índio não surge como elemento exterior – eles estão no filme como si mesmos. O ideal de Rosselini, mais do que nunca, é cumprido à risca: “Profissão: ser humano”.

Nessa fase da carreira de Tonacci ganha destaque uma figura essencial: a montadora Cristina Amaral. Conhecida pelo seu trabalho com Carlos Reichenbach, aluna de Paulo Emílio, na USP, ela é praticamente uma codiretora de “Serras da Desordem”. Não há mais diferença entre o filme e a vida: o cinema é antes de tudo um afeto, um afeto que se inicia no olhar e se prolonga em silêncio.

Após dois anos de montagem, após inúmeras críticas positivas em seu lançamento em 2008, o filme é celebrado como o mais importante dos anos 2000, ao lado de “O Signo do Caos” (2003), de Sganzerla. A obra de Tonacci, no entanto, não está encerrada. Em 2008 ele dirige o média-metragem Benzedeiras. A partir do programa para o Canal Brasil, tivemos recursos para telecinar parte do material que ele rodou nos anos 1990 para um filme que se chamaria Paixões. Ao conversar com Tonacci, percebemos o quanto as ideias fluem, se multiplicam, filmes e filmes surgem em questões de segundos.

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A integridade. Se tivesse que resumir a trajetória de Tonacci em uma só palavra essa seria a escolhida. Para além da sua linguagem, do seu olhar, há o aspecto humano. Por quê filmar? Por quê criar uma imagem do mundo? Por vaidade? Por distração? Nesse caso, não há essas opções. O cinema está aí para mudar o mundo. O cineasta filma pelo prazer de ver como as coisas são ao serem filmadas. “O plano é o olhar. A foto é que me clica. Use o olhar para ver, não para registrar. Olhe; não filme. A composição é que diz o que é a imagem. Você se entrega a um sentido que está sendo revelado pelo olhar”.

Se a imagem é uma dúvida?
Andrea Tonacci, movimento interior.

* Rodrigo Grota é cineasta e professor de cinema; texto originalmente publicado na Revista Taturana nº 10, lançada em setembro de 2012 durante a 14a Mostra Londrina de Cinema.

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