Travelling na Kombi

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Marcus Mello*

Andrea Tonacci está de volta. Mas quem é Andrea Tonacci? Para alguns jornalistas presentes na última edição do Festival de Gramado, tratava-se de uma diretora em início de carreira, participando da competição de longas em 35mm com Serras da Desordem, um documentário sobre índios. Em país de memória curta, onde a desinformação viceja, as coisas costumam se dar deste modo. Portanto, aquilo que deveria ser desnecessário torna-se artigo de primeira necessidade. Há então que se repetir o óbvio: Andrea Tonacci é o homem (chama-se assim porque nasceu na Itália, onde Andrea é um nome masculino) que entrou para a história do cinema brasileiro ao dirigir “Bang Bang” (1970), o mais godardiano dos filmes já feitos no Brasil.

Passados 36 anos, Tonacci retorna à cena com “Serras da Desordem”, grande vencedor de Gramado 2006 (melhor filme, melhor direção e melhor fotografia), que, a propósito, não é um documentário. Desfeitos os mal-entendidos, voltemos ao início.

Andrea Tonacci nasceu em Roma, em 1944, e chegou ao Brasil em 1953, radicando-se com a família em São Paulo. Nos anos 60, cursando a escola de Engenharia e Arquitetura, começa a aproximar-se do cinema, ligando-se a Rogério Sganzerla e Carlos Reichenbach, para logo engajar-se no movimento que ficaria conhecido como cinema marginal. Depois de despertar atenção com os curtas “Olho por Olho” (1965) e “Blá Blá Blá” (1968), realiza Bang Bang, filmado em apenas onze dias. Apesar de ter sua exibição restrita ao circuito alternativo, o filme foi arregimentando fãs por onde passava (chegou a ser exibido no célebre Eletric Cinema, em Londres, e participou da Quinzena dos Realizadores no Festival de Cannes), bastando para estabelecer a reputação de Tonacci. Depois de “Bang Bang”, o diretor passou a se interessar pelo documentário, estando entre os pioneiros na utilização do vídeo no Brasil, ainda no começo da década de 70.

Filme Demência – Embora tenha sido rodado em 1970, “Bang Bang” só chegaria aos cinemas em 1973. O filme foi saudado pelos críticos mais importantes da época. Entre eles, Paulo Emilio Salles Gomes, que sublinhou a “vocação profunda” de Tonacci para “o mistério da realidade” e “o talento todo especial com que filma automóveis, de dentro ou de fora, parados e em movimento”. Esse interesse pelos carros e a habilidade para filmá-los de certo modo irá encontrar correspondência, anos depois, com o cinema de Abbas Kiarostami, o diretor iraniano que costuma confinar seus personagens em carros em movimento (“O Gosto da Cereja”, “Dez”). Outro admirador de “Bang Bang” era Jairo Ferreira, que dedicou a Tonacci um capítulo de seu livro Cinema de Invenção. “Jean-Luc Godard me ensinou a filmar tudo pela metade do preço”, dizia Rogério Sganzerla. E em sua coluna no jornal São Paulo Shimbun, Ferreira, grande divulgador do cinema marginal (ou “Udigrudi”) paulista, saudava a criatividade daqueles jovens realizadores para driblar os orçamentos franciscanos e os prazos exíguos que tinham para viabilizar seus filmes. “Travelling se faz até com dois caras puxando o câmera sentado num tapete no chão, numa cadeira de rodas emprestada de hospital, carrinho de carga, ou mesmo patinete, Kombi ou qualquer outro carro. O negócio é movimentar a câmera em todas as direções, ter material filmado pra cortar em movimento da moviola.” (em Críticas de Invenção: Os Anos do São Paulo Shimbum, p. 227, coletânea de textos de Jairo Ferreira organizada por Alessandro Gama). Nessa artesania elevada a um grau supremo de sofisticação, justamente por ter de recorrer à invenção a fim de superar a precariedade dos meios, Tonacci mostra-se insuperável, extraindo do “travelling na Kombi” resultados sublimes.

“Bang Bang” forma, ao lado de “O Bandido da Luz Vermelha” (1968), de Rogério Sganzerla, e “O Pornógrafo” (1970), de João Callegaro, a grande tríade metalingüística do cinema paulista na virada dos anos 60 para os 70, fortemente inspirada pelo cinema de Godard. Ainda hoje, o filme permanece com o seu frescor intacto, desafiando novos espectadores a decifrarem os enigmas propostos por suas imagens. Implodindo a narrativa clássica, “Bang Bang” está construído através de longos planos-seqüência, que encantam pelo insólito das situações, pelo humor e pelo rigor da construção. A trama, ou fiapo de trama, acompanha um homem (Paulo César Pereio) perseguido por três bandidos (um deles travestido) pelas ruas de Belo Horizonte.

A influência de Godard manifesta-se de todas as formas em “Bang Bang”. Seja pela citação direta (o personagem de Peréio, sentado no balcão de um bar com um espelho ao fundo e de costas para a câmera, conversa com um bêbado, como Anna Karina em “Viver a Vida”; no quarto do hotel, o travesti-bandido toca uma música na jukebox e começa a dançar, como a mesma Anna Karina em “Bande à Part” e também em “Viver a Vida”) ou pela incorporação de elementos estilísticos caros ao diretor franco-suíço (a preferência pelos travellings, a metalinguagem). O filme apresenta uma série de sequências fechadas em si próprias, sem ligação aparente com o que vem a seguir e freqüentemente repetidas com leves alterações (Peréio no táxi, a bailarina espanhola no terraço do prédio, a conversa de Peréio com a mulher no bar), à maneira de repetições musicais. O uso recorrente da canção “Eu Sonhei Que Tu Estavas Tão Linda”, cantada pelos personagens em diferentes momentos da narrativa, acentua esse caráter de composição musical identificado na arquitetura de “Bang Bang”.

Filme de cinema, em que a câmera várias vezes é mostrada ao espectador, seja através do reflexo em um espelho ou de um personagem chocando-se contra a lente, “Bang Bang” é um tiro mortal no coração dos acomodados e sem imaginação. Sua invenção não tem limites, provocando momentos da mais alta diversão, dignas de um filme de aventura como “Hatari” (1959), de Howard Hawks, citado de forma explícita numa das tantas cenas antológicas criadas por Tonacci neste clássico da transgressão.

Cinema-ensaio – “Serras da Desordem” está num registro bem diferente de “Bang Bang”. A referência principal não é mais Godard e sim Jean Rouch e seu cinema etnográfico. Saem os carros e as cidades, entram os índios e o interior do país. Projeto que tomou dez anos da vida do diretor, “Serras da Desordem” tem sua gênese localizada ainda na segunda metade dos anos 70, quando Tonacci foi ao Maranhão para filmar um conflito de terras envolvendo tribos da região. O resultado foi o longa “Conversas no Maranhão” (1977), rodado em 16mm, que logo lhe renderia uma bolsa da Fundação Guggenheim, para financiamento de um projeto intitulado “A Visão dos Vencidos”. O objetivo do projeto era dar voz a tribos de diversas regiões do continente americano, que retratariam elas próprias sua realidade com câmeras de vídeo, originando vários documentários. Na década de 80, Tonacci junta-se a uma expedição da Funai, em busca de uma tribo isolada, os índios arara. Foram três anos no meio da selva, experiência retratada num documentário dividido em três partes, “Os Arara” (1982), exibido pela Rede Bandeirantes. Através de um técnico da Funai, o sertanista Sydney Possuelo, Tonacci ficará conhecendo a impressionante história do índio Carapiru, personagem central de “Serras da Desordem”.

Depois de ver sua tribo massacrada por fazendeiros, Carapiru embrenha-se na floresta, vagando sem rumo durante dez anos, até chegar a um vilarejo localizado a 2 mil quilômetros de sua aldeia, onde acaba sendo adotado por uma família do local. Ao saber do fato, a Funai o resgata e Carapiru será levado a Brasília por Sydney Possuelo. Logo sua história vai parar nos jornais e na televisão. Durante as investigações para descobrir a localização de sua tribo de origem, acontece de modo absolutamente casual o reencontro de Carapiru com seu filho, já adulto e civilizado. Levado de volta a sua tribo, Carapiru não consegue se readaptar e decide retornar para a floresta.

Com esse material “real” – ainda que marcado por episódios dignos de um folhetim do século XIX – em mãos, Tonacci decidiu reencenar o drama de Carapiru, com os verdadeiros protagonistas da história representando a si próprios diante da câmera. O resultado é extraordinário. Serras da Desordem desestabiliza os conceitos de ficção e documentário, fazendo avançar ainda mais as conquistas do cinema de Jean Rouch, no qual tais questões já se manifestavam através de filmes como “Os Mestres Loucos” (1955), “Eu, um Negro” (1958) e “Jaguar” (1967).

Há um longo prólogo no início do filme que resume de modo exemplar as intenções de Tonacci em “Serras da Desordem”. Uma tribo de índios é flagrada em suas atividades mais corriqueiras na floresta. Os homens caçam ou dormem em suas redes, as crianças brincam, as mulheres se banham num riacho. São imagens belíssimas, que evocam o “Tabu” de Murnau. Ao dilatar o tempo, apelando para o uso de planos-seqüência e reiterações, Tonacci transporta o espectador a um Éden pré-histórico, onde Homem e Natureza são uma coisa só, perfeitamente integrados. Nesse estado paradisíaco anterior à civilização tecnológica – e, portanto, ao cinema –, a própria imagem precisa ser “naturalizada”. O espectador deve esquecer que aquilo que está diante dele é um filme, porque o cinema ainda não existe. Se trata apenas de observar o mundo em seu estágio primitivo, a vida em seu movimento natural. E de repente, o choque. Este fluxo de imagens edênicas será interrompido por um corte seco. O plano de um trem vindo em nossa direção, como o trem dos irmãos Lumière chegando à estação, nos expulsa do paraíso. É a civilização e o cinema que chegam, para nos privar, violentamente, desse olhar puro. A dizimação da tribo de Carapiru poderá então ser reencenada. Tudo que vem a seguir irá girar em torno das oposições sintetizadas nessa seqüência: arcaico x moderno, natureza x civilização, realidade x representação, ficção x documentário.

Recorrendo a vários formatos (imagens de arquivo, fotografias, registros documentais, encenações), Andrea Tonacci elege a tragédia de Carapiru como pretexto para produzir uma reflexão ensaística sobre um mundo em desequilíbrio, o que aproxima Serras da Desordem do filme-ensaio eisensteiniano. O mais fascinante, contudo, é perceber que o diretor inclui o próprio cinema nesse processo predatório e desestabilizador do qual o protagonista de “Serras da Desordem” será vítima. Depois de vagar anos pela floresta e voltar à sua aldeia de origem, Carapiru não consegue mais se adaptar. Embrenha-se novamente na mata e lá encontra apenas a equipe de Tonacci aguardando para filmá-lo. O cinema (a civilização) “roubou sua alma”. Reduzido a uma imagem, Carapiru interpela o espectador, balbuciando palavras incompreensíveis. Não sabemos o que ele quer nos comunicar. O essencial, porém, já foi dito em sua saga dialeticamente reencenada por Tonacci ao longo das mais de duas horas de projeção de “Serras da Desordem”: nesse mundo em ruínas, Carapiru anuncia, como o Anjo da História de Walter Benjamin, o fracasso da modernidade e a perda da alma do homem contemporâneo.

* Mestre em Literatura Brasileira pela UFRGS, colaborador das revistas Aplauso e Cinética, programador da Cinemateca Capitólio

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