Luiza Lusvarghi*
Nos primeiros longos minutos de “Aquarius”, percebemos, em meio a uma festa familiar, que Clara, a protagonista, vivida na juventude pela atriz mineira Bárbara Colen, e na maturidade por Sonia Braga, acaba de sobreviver a um câncer. E também que pertence a uma tradição familiar de mulheres ousadas e libertárias, que não se conformam com o status quo, com o papel submisso que lhes foi reservado dentro de uma sociedade patriarcal. No mundo moderno, o câncer possui a obscenidade de uma doença maldita, a exemplo da tuberculose no passado, como bem observou a escritora estadunidense Susan Sontag, ela própria uma vítima da doença, em seu ensaio “Doença como metáfora” (1978). Segundo a autora, a AIDS, momentaneamente, assumiu o papel estigmatizante do câncer, que não atinge, por exemplo, as doenças coronarianas, mas não chega a ofuscar a maldição da doença, sobretudo quando ele atinge a mulher naquele que é seu maior fator identitário dentro da nossa cultura – os seios.
Clara vence o câncer, perde o marido que amava, mas ostenta aquele seio extirpado como uma cicatriz, que ela oculta sob trajes de banho sóbrios enquanto se exercita, solitária, diariamente na praia, sob o olhar atento e protetor do salva-vidas e confidente Roberval (Irandhir Santos). Como muitas mulheres de sua geração, ela não reconstituiu a mama, técnica que demorou a se desenvolver e a ser considerada como parte integrante do tratamento, e apesar de não se esquivar a mencionar o incidente, carrega sua condição como algo inominável, que não deve ser pronunciado, e que, apesar de sua beleza madura e forte, lhe acarreta preconceitos e rejeição. Ao revelar ao homem com quem sai pela primeira vez, de forma discreta, que ela tem um problema, colocando suas mãos sobre seu peito, recebe de volta um sorriso amarelado e um pedido de desculpas, com a frase “acho melhor deixar você em casa”.
E é em casa que ela passa a maior parte do tempo e que se desenvolve a narrativa do filme, vasculhando memórias, guiada pela trilha musical extremamente vinculada aos anos 1970, os anos da ditadura e de canções como “Hoje”, do compositor uruguaio Taiguara, um dos poucos sucessos românticos de um dos cantores mais censurados da época, e que era admirador incondicional do Cavaleiro da Esperança, Luís Carlos Prestes.
O apartamento em que vive Clara, jornalista e crítica de música aposentada, é o último ainda ocupado em um prédio antigo, o edifício Aquarius, situado em Boa Viagem, Recife, e que foi adquirido por uma imobiliária poderosa, que deseja se livrar dela, o maior obstáculo ao novo empreendimento comercial da empresa. A praia de Boa Viagem se caracteriza na atualidade pela presença de espigões brilhantes e metálicos que tolhem a luz do sol projetada sobre a estreita faixa de areia. Ao longo de duas horas de projeção, Clara é ameaçada pelo inescrupuloso e jovem diretor Diego Bonfim (Humberto Carrão), jovem ambicioso e herdeiro da imobiliária que traz o nome de sua família, por ex-moradores que venderam a sua parte e desejam ver o empreendimento ser concluído para que possam ter direito à sua parte do acordo, e até pelos próprios filhos. O prédio, charmoso, hoje seria classificado como vintage. Clara se apega a ele e a suas recordações como se fossem uma projeção de sua própria alma.
O filme, dividido em capítulos, tem um desfecho que aborda o tema do câncer, sugerido na primeira parte como doença, e por fim como símbolo de resistência, sinal de vida. “Hoje, prefiro causar um câncer a sofrer um”, afirma intempestivamente Clara ao reagir a seus agressores e adentrar a imobiliária. O câncer é também metáfora, em nossa época, de melancolia, desejo reprimido, incapacidade de expressar raiva. Sontag, em seu estudo, destaca definições antigas do câncer, que em latim significa caranguejo, também nomeado como cancro, presentes no Oxford English dictionary: “Tudo o que irrita, corrói, corrompe ou consome, lentamente e em segredo”. A doença é em realidade associada ao caranguejo por seu corpo protuberante que representaria um inchaço, enquanto as patas seriam as veias que se espraiam distribuindo o mal para todo o corpo.
A tuberculose, no passado associada por vezes à depravação, à boêmia e à perversão, também já foi descrita como um câncer, um processo em que o corpo é consumido. Na literatura, sua vitima mais famosa foi Marguerite Gautier em “A Dama das Camélias”(1858) e seus protagonistas em geral são associados à pobreza, à boêmia, à marginalidade. Já o câncer seria “uma doença de vida de classe média”, por estar estatisticamente vinculado aos países mais desenvolvidos, e estaria ligado ao excesso, à fartura, à sociedade industrial de consumo e seus venenos antimonotonia. O edifício Aquarius, na realidade o edifício Oceania, na orla do Pina, em Recife, quase na divisa com Boa Viagem, é consumido por cupins, se deteriora, como um corpo contaminado pela ganância. E Clara, que no processo do filme, desafiada pelo inescrupuloso Diego Bonfim, vai aos poucos reassumindo sua sexualidade, termina por devolver a seus algozes a mesma náusea que teria gerado a sua enfermidade. O câncer é a doença do mundo capitalista, voraz, e seus resíduos tóxicos se voltam contra seus criadores, empresários sem nenhum princípio, quando Clara reage. É o caráter que causa a doença, e sua cura é libertar-se desta resignação. O sentido da metáfora aqui é ambíguo e conflituoso, uma vez que a doença representa de forma emblemática no imaginário ocidental os malefícios de um sistema de organização social, mas também vitimiza seus pacientes, colocando-os como responsáveis pela própria patologia. Clara não vai se livrar do estigma, mas ao reconhecê-lo, abre o caminho para a libertação.
* Luiza Lusvarghi é pesquisadora, crítica e professora de cinema.