Rafael Carvalho *
Campo fértil de produção, aprendizado e risco, o curta-metragem no Brasil vive um momento excepcional de força criativa. Buscarei aqui lançar um olhar sobre alguns curtas de destaque exibidos em competição na mostra brasileira do 27º Cine Ceará. Foram apresentados 14 filmes com propostas bem diversas, o que reflete a opção da curadoria em não se ater a uma linha de pensamento muito restrita, apesar de encontrarmos algumas correlações entre certos filmes selecionados.
Começo por alguns destaques e pelo filme que o Júri Abraccine premiou (grupo formado por Ailton Monteiro, Cynthia Calvo e por mim): a animação Vênus – Filó, a Fadinha Lésbica, de Sávio Leite. Única animação selecionada, o filme é voltado para adultos, via poema erótico de Hilda Hilst ilustrado com as imagens criadas pelo diretor através de processo de rotoscopia (animação feita sobre imagens previamente filmadas).
O texto de Hilst possui a marca da irreverência, teor sexualmente explícito e fabular. Mas para além do caráter pansexual e provocativo inerente, o curta de Sávio nos coloca uma questão fundamental: onde está a originalidade em ilustrar meramente um texto pronto (e ótimo) que já carrega as nuances conceituais do filme? São pouco mais de seis minutos de duração, e o curta quase escorrega em uma proposta exemplificadora. No entanto, compreende o próprio ato de animação como modo de interpretação, como forma de por em tela, explicitamente, aquilo que já era muito “imagético” no texto original. Ademais, a narração de Helena Ignez é cheia de malemolência, carrega um tom entre o bonachão e o prazeroso, coisa de espíritos livres. Casamento melhor não há.
Outro grande destaque dentre os curtas é O Estacionamento, de William Biagioli. Começa com a chegada de um imigrante haitiano no trabalhar como vigia de um estacionamento. Nos fundos, o dono ajeita um quarto (insalubre) que ele passa a ocupar e dormir. As dificuldades com a língua tornam o rapaz ainda muito retraído e distante dos demais funcionários. Até que o filme transforma em pesadelo a vida dele a partir de um incidente noturno que o deixa sem ação. Mas mais que isso, o filme aposta na fabulação (ou seria projeção alucinada da mente?) para apontar caminhos.
Além de ser o mais “cinematográfico” de todos os curtas da seleção – o delírio dos carros com seus faróis acessos e as buzinas inquietas conferem o tom de absurdo e alucinação muito bem aproveitados enquanto atmosfera –, O Estacionamento parece fazer um comentário muito sagaz sobre a situação de imigrantes postos em condição de vulnerabilidade, especialmente no ambiente de trabalho. O filme retrata um estado de aprisionamento, mas ele mesmo promove a libertação do protagonista como resposta possível ao problema que ele próprio aponta. Há lugares e situações que não devem ser vivenciados por alguém, especialmente um alguém estrangeiro, deslocado de sua cultura num lugar desconhecido. É preciso seguir sem sufocar, e alguém precisa abrir a porta.
Também fez bela passagem pelo Cine Ceará o curta Valentina, assinado por André Félix e Estevão Meneguzzo. Adentramos o ambiente da Cinemateca do MAM, no Rio de Janeiro, onde a protagonista trabalha. Ela está encarregada de preparar uma cópia 35mm do filme Eternamente Pagu (1987), de Norma Bengell, até descobrir o sumiço do último rolo da película. No campo pessoal, o curta subtende um desentendimento entre ela e o namorado.
O filme lida claramente com questões de memória e preservação, mas sabe ir além desse lugar de discussão, a despeito do ambiente e da linha de roteiro que segue, fazendo um paralelo curioso entre essa mulher que busca a história/memória de outra(s), mais do que uma busca física. Esse paralelo é mesmo explícito, revelado na cena em que a metade do rosto de Valentina se conjuga com o rosto de Pagu/Carla Camurati – síntese que a torna uma quase irmã de uma Louise Brooks perdida no tempo. Existe uma impassividade muito marcante na expressão da atriz Gabriella Fabrianni, o que a torna um tanto fria, um tanto mecânica. Mas a frieza no rosto dela vai ceder lugar à introspecção e à necessidade de um encontro com essas mulheres que fazem parte de um imaginário cinéfilo, e que precisam sair dali para fazerem parte de um imaginário de força feminina, mais que tudo.
Ser experimental
Vale destacar aqui o espaço reservado à produção experimental, opção abraçada pela equipe de curadoria. Talvez o uso da definição “experimental” seja um equívoco na medida em que ele simplesmente almeja uma saída fácil, tenta “resolver” o problema de quando um filme não é claramente uma ficção ou um documentário. E é cada vez mais comum encontrar na produção nacional (curtas e longas) filmes que trafegam por por essa fronteira e não querem se fechar em uma categoria definidora.
É o caso, por exemplo, de Vando Vulgo Vedita, filme arredio que não parece precisar se enquadrar, assim como seu núcleo de jovens personagens. Dirigido por Andréia Pires e Leonardo Mouramateus, o filme nos apresenta um microcosmo muito particular a partir de um grupo de amigos que vivem num bairro periférico de Fortaleza. Um amigo em comum, sobre quem eles falam como se não estivesse mais entre eles, parece reuni-los como foco de resistência – uma brincadeira com um personagem de anime japonês explica por que todos eles tingiram o cabelo de louro, e o comportamento desafiador que coloca em evidência um destemor e liberdades sexuais é mais um modo de afirmação. Não é um filme fácil de apreender, mas parece bem confortável nesse lugar de indefinições e longe de amarras.
Há de se falar também do grande vencedor da categoria, escolhido pelo júri oficial, Festejo Muito Pessoal, de Carlos Adriano. Ora, Adriano já é figura carimbada e altamente produtiva no campo do curta-metragem e do cinema experimental. Curioso notar que seu filme surge de uma encomenda (o centenário do grande crítico e intelectual brasileiro Paulo Emilio Salles Gomes), mas não tem compromisso nenhum com a apresentação didática e histórica, algo que não faria jus à trajetória do cineasta. De Festejo Muito Pessoal sobressai, como em muitos outros filmes do diretor, uma alegria muito grande, uma celebração que provém de lampejos de imagens por vezes muito rápidas, trafegando entre os poucos registros que se tem do próprio Paulo Emilio e das vibrações em forma de filme, passando pela lembrança quase que obrigatória de Jean Vigo e de Humberto Mauro, além de alguns outros. No fundo, são as imagens que ficam, e Carlos Adriano sempre olha para elas com felicidade.
Mehr Licht!, de Mariana Kaufman, é outro dos filmes que mais abertamente abraça o estatuto experimental, ainda que seu filme seja o mais distanciador deles em relação ao público. A própria escolha de manter o título em alemão, referindo-se às últimas palavras proferidas por Goethe antes de morrer (significa “mais luz”) carrega em si um ar quase elitista, de difícil acesso. O filme é como o acatar desse pedido final e coloca em evidência a relação de uma mulher com fortes focos de luz – e sua dualidade marcante, já que a luz ilumina e também é capaz de cegar.
Caminhos da memória
Outro ponto de confluência entre os filmes é o lugar da memória como catalisador de ações e buscas por parte de seus realizadores. Filmes já citados aqui passam por esse caminho, como Festejo Muito Pessoal. Mas vale destacar alguns outros trabalhos, como A Balada do Sr. Watson, de Firmino Holanda. O filme dá uma volta proposital por temas abrangentes e universais para se chegar à aldeia local: um retrato de Fortaleza de outrora, via rememoração da história dos avós do cineasta – ela uma cearense, ele um inglês recém-chegado à província.
É uma pena que o filme não se decida entre o registro documental tradicional ou, melhor opção, entre o registro vibrante e descompromissado que por vezes o diretor ensaia e experimenta, a partir de inscrições que são colocadas sobre as fotos, ainda que de forma tímida. Falta mais vigor para assumir essa proposta e passar a limpo fatos históricos com mais pujança, leveza ou irreverência. O filme ainda apresenta aquele forte apego ao sacrossanto estatuto da imagem documental, uma dificuldade de atravessá-lo para assim ressiginificar.
Por um caminho similar, outro curta buscou chegar a lugar distinto através de algumas recordações pessoais para se afundar mesmo no presente histórico do país: Memórias do Subsolo ou o Homem que Cavou Até Encontrar uma Redoma, de Felipe Camilo, propõe um olhar ao mesmo tempo melancólico e assertivo – talvez desolador mesmo – sobre um estado de coisas que não anda nada bem – pessoal e politicamente.
E assim como em Valentina, talvez indo mais fundo, o imaginário cinematográfico marca presença no nostálgico Do Que Se Faz de Conta, curta de Amanda Pontes e Michelline Helena. Mas não se trata de uma saudade do que se foi, mas daquilo que poderia ter sido se a protagonista não fosse abandonada numa sala de cinema quando bebê e criada pelo projecionista do lugar. Gilda – ora, esse nome! – refugia-se no mundo da tela para escapar da tristeza, da desolação, da falta de perspectivas. Parece banal, ideia batida, um tanto quanto romântico e autopiedoso, mas não é isso o que todos nós fazemos constantemente?
* Rafael Carvalho é jornalista e crítico cinematográfico. Foi membro do júri Abraccine no 27º Cine Ceará.