Júlio Bezerra*
É preciso reconhecer que nosso documentário, diferente de cinematografias bem melhor estruturadas que a nossa, sempre foi essencialmente um cinema ambicioso em seu desejo de investigar o país, de desvendar o que significa ser brasileiro e viver deste lado do Atlântico. Não deixa tampouco de ser verdade que, salvo algumas exceções, o documentário brasileiro das últimas décadas esteve em dívida com o quadro de violência cotidiana que assola de forma implacável as minorias e comunidades pobres das cidades e do campo. Esta dívida vem sendo sanada faz alguns anos, e o É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários é parte importante deste processo, dando espaço a variadas projeções e espelhamentos do enigma brasileiro.
Este ano, como era de se esperar, em meio às incertezas e injustiças que mancham a vida social, política e econômica brasileira hoje, o festival, sobretudo (porém não apenas) em suas mostras competitivas, veio na forma de um grande acerto de contas, seja com Che Guevara e seus sonhos (impossíveis), com o passado não resolvido do período militar, com o martírio indígena, com o estado policial que marca a vida da maioria de nossa população. São filmes sem subterfúgios, feitos de angústias, ansiedades, paixões e medos. Filmes com pressa, de uma urgência que, nos melhores casos, diz respeito não somente aos temas, mas às formas diversas de narrá-los.
Este é certamente o caso de Elegia de um crime, a segunda parte de uma trilogia de Cristiano Burlan sobre mortes trágicas em sua família iniciada em Mataram meu irmão (2013) – o terceiro filme será sobre a morte de seu pai. Durante muito tempo, nosso documentário foi um cinema feito por quem tem, filmando quem tem menos. É o documentário do drama social brasileiro. E mesmo quando ganham a primeira pessoa, algo cada vez mais recorrente, os documentários investem por vezes à fórceps em molduras narrativas ou em uma dosagem (mais ou menos equilibrada) entre a exposição do documentarista e algum tipo de investigação ou ressonância histórica. Elegia de um crime, um filme de amor, porém com sangue nos olhos, é diferente.
Burlan se volta para o assassinato de sua mãe em 2011, dividindo-se em conversas com os irmãos ainda vivos, parentes e amigos da família, bem como em uma espécie de investigação a respeito do ex-namorado e assassino de sua mãe. Seu olhar não é clínico e objetivo. Ele não parte tampouco de estatísticas, nem oferece soluções. Burlan é movido por paixão e um profundo sentimento de impotência. E Elegia de um crime é a necessidade urgente de colocar tudo isso para fora. Burlan não tem cabeça para trilha, filtros, sensibilidades, sentimentalismos. Ele mais ouve do que fala, e faz sua mãe reviver nas memórias de seus entrevistados. É curioso observar, como já acontecia em Mataram meu irmão, que os entrevistados em geral não são devidamente identificados por legendas. O que interessa é o que está sendo dito, o que se percebe nos doídos e constantes silêncios, entre cada fala, como elas juntas formam uma outra coisa, umas espécie de retrato e crônica. Burlan ainda nos impõe a presença de seus entrevistados. Eles cantam e contam histórias. São de carne, osso, arrependimento e esperança. Foram todos tocados por Isabel, também ela presente, em fotos, com sorrisos no rosto.
O que interessa a Burlan não é a construção de um discurso totalizante e definitivo sobre sua mãe. Não se trata de uma sublimação. O tom não é moralizante, nem exatamente investigativo. Mesmo quando Burlan se junta à repórter que cobriu o crime sete anos atrás na tentativa de fazer a polícia procurar pelo assassino, o cineasta está menos interessado em investigar seu paradeiro do que circundá-lo, sublinhando a falta de justiça, a indiferença, seu sentimento de impotência, o movimento implacável e interminável da tragédia de sua família. O cinema em Elegia de um crime é como uma oportunidade ética crucial. É o que vejo no esforço de Burlan para lembrar de sua mãe, de seus irmãos, da família. E assim, ao falar de si, dos seus, de sua mãe, o filme encontra você e eu, o Brasil e a violência urbana brasileira. Sair do cinema e caminhar pelas ruas anoitecidas do Rio de Janeiro foi como se o filme não tivesse terminado. E, de fato, ele não terminou. Segue aqui comigo, como um locatário inquieto, vagando em minha cabeça, demandando minha atenção.
Apenas um outro filme da mostra competitiva se recusa a adormecer na zona cinzenta de minha memória. Espera, ao contrário, de Elegia de um crime e a grande maioria de seus concorrentes, reivindica o que João Moreira Salles chamou certa vez de “direito a um cinema inútil”. É inútil não no sentido de se satisfazer com uma certa auto-indulgência, mas de buscar em si mesmo sua própria razão de ser. Inútil porque não precisa existir senão para si mesmo. Cao Guimarães sempre se dá o privilégio do tempo. Tempo para refletir sobre as pequenas belezas do documentário, para voltar-se para dentro. Ele faz um cinema de intensidades, em transe com o mundo histórico. Um cinema que não narra, mas indica a presença real das coisas e nos faz lembrar que o mundo é mais do que a soma das evidencias visíveis que nos são mostradas.
Espera é um furacão delicado a capturar toda a vida que lhe cerca. Logo no início do filme, Guimarães nos recebe sem indicar exatamente um começo, e ele irá se despedir sem tampouco delimitar um fim, como se começássemos e terminássemos em qualquer lugar, em lugar nenhum. Espera deseja romper sem radicalismos com uma certa maneira de ver um filme, como se o espectador contemplasse o filme sem os marcos e coordenadas tradicionais. O filme preserva o fluir do tempo com muita paciência e geometrias nos enquadramentos. A espera então se desmembra em situações das mais banais às mais excepcionais: um jovem transgênero que se aplica testosterona e aguarda ansioso pelos resultados, músicos e cantores antes de entrar em cena, um porteiro, pessoas dormindo, salas de espera. Guimarães também resolve revelar rolos de Super 8 que dormiam numa geladeira por alguns anos, e antes de nos oferecer essas imagens, ele nos impõe uma tela negra. Espera se aproxima se distanciando, perde-se para encontrar-se.
Na verdade, a questão da espera sempre fez parte do cinema de Guimarães, sempre interessado em fazer do cinema uma forma de entrar em mundos aparentemente impenetráveis. A espera como um momento em que o acidente e o desconhecido parecem sempre à espreita, como uma forma de aproximar o cinema do tempo da vida. É preciso dizer: o acaso aqui não é nada aleatório ou espontâneo, mas amplamente convocado e construído a partir de estratégias e princípios próprios. O olhar receptivo de Guimarães é absolutamente atuante e participativo, e o tempo que ele reivindica pra si é o tempo mais alongado que ele cede às coisas, que, em filmes como este, parecem mais vivas. Espera talvez não seja dos melhores de Guimarães, mas me parece um filme com o vigor característico deste cineasta.
* Júlio Bezerra foi membro do júri Abraccine no 23º É Tudo Verdade.