Maria Caú*
A potência da música brasileira explica o grande número de documentários nacionais que tratam do tema, geralmente se centrando na trajetória de indivíduos ou grupos num formato de cinebiografia repleto de “cabeças falantes” que mais comumente se concentram em recontar fatos da vida do biografado ou mensurar o impacto da sua produção. Seguindo esse modelo, o processo criativo do musicista permanece quase completamente ausente, obscurecido por uma vaguíssima ideia de inspiração que tenta traçar uma questionável linha de causalidade direta entre certos fatos biográficos e as canções compostas ou gravadas em dada época, localizar musas e reinterpretar a obra à luz da vida pessoal. Assim, embora filmes como esses sejam repletos de canções, eles se negam a ver a criação musical enquanto processo, sendo difícil encontrar títulos que adotem essa perspectiva. Em outras searas artísticas, particularmente no caso das artes plásticas (Beuys; Beltracchi – a arte da falsificação) ou performáticas (Marina Abramovic – a artista está presente), a verve criadora e os métodos empregados pelo artista são mais frequentemente dissecados em documentários que ganham força por desvelar a criação como processo e visão particular de mundo.
Na seleção de longas-metragens deste ano do festival É Tudo Verdade, temos dentre os sete filmes que compuseram a mostra competitiva dois que representam justamente essas duas vertentes de abordagem, coincidentemente os dois únicos filmes cuja direção é assinada por mulheres. Por um lado, o extremamente protocolar Dorival Caymmi – um homem de afetos, dirigido por Daniela Broitman, segue a estrutura mil vezes repetida da cinebiografia de caráter intensamente laudatório com depoimentos e imagens de arquivo. Essa opção acaba por arrefecer o interesse no filme, que a um só tempo se recusa a se aprofundar no método de trabalho do compositor baiano e a enriquecer o retrato biográfico tocando em temas mais polêmicos. Desse modo, Dorival parece um homem quase desprovido de defeitos – particularmente, a relação com a mulher, que “escolheu” parar de cantar assim que se casou com ele, as breves referências às possíveis amantes e o desentendimento com a filha Nana parecem bastante mal trabalhados por um roteiro que evita cuidadosamente assuntos controversos e cujas entrevistas têm em comum um tom inquebrantável e cansativo de deferência. Nesse caminho, o machismo do compositor é tratado de forma jocosa e é indesculpável o discurso do longa sobre Carmen Miranda, essa mulher brilhante que o filme sugere ter moldado seu olhar-assinatura a partir das instruções de Dorival, reduzida a alguém com quem ele pode ou não ter transado (e esse “mistério” é colocado, claro, como causo, ou piada). Além disso, as técnicas de composição do autor são bastante ofuscadas (fatos imprecisos como seu isolamento num quarto fechado para compor são mencionados somente en passant), e sua forte ligação com certas temáticas que perpassam toda a sua obra (o mar, a figura do pescador) não é jamais escrutinada de maneira mais detida.
No outro espectro está o interessante Rumo, dos diretores Flavio Frederico e Mariana Pamplona, um filme que talvez passe despercebido por conta da despretensão e da negação de qualquer autoritarismo de discurso, mas que tem como proposta justamente mapear o processo criativo do grupo musical que lhe dá título. Surgido em meados dos anos 1970, o Rumo é um dos expoentes da chamada Vanguarda Paulistana e, apesar da sua grande relevância para o cenário cultural da época, teve imensas dificuldades para gravar discos, permanecendo relativamente desconhecido do grande público até hoje. Desse modo, o documentário se propõe a resgatar a trajetória desses músicos, com uma extensa pesquisa e uma amplitude de materiais de arquivo, mas o faz sem qualquer tentativa de abordagem totalitária, sem se pretender um documento definitivo ou monolítico. Essa sutil mas importante diferença, que espelha o constante processo de reinvenção que marcou esse coletivo, fica clara já de início, quando Luiz Tati, um dos integrantes, responde à pergunta dos entrevistadores sobre a importância do grupo na história da música popular brasileira. Tati afirma que o lugar do Rumo nesse cenário não está demarcado em definitivo, mas sendo construído – e aqui é evidente que o longa deseja tomar parte nessa construção.
A partir dessa postura inicial, o filme escolhe se concentrar radicalmente na trajetória inventiva no grupo, com suas músicas que se aproximam da linguagem falada: por vezes longas ou quase incantáveis, teatralizadas, irreverentes, plenas de sonoridades inusitadas e sempre em confronto com a música mais convencional estabelecida; canções, enfim, que exigem um tipo de reflexão cerebral bastante diferente da ideia de música enquanto arrebatamento sensorial. Pois essa visão musical é interessante o suficiente para sustentar os 77 minutos do filme, sem a muleta fácil de recorrer a picuinhas entre integrantes ou questões por demais pessoais: de fato, saímos da sessão sem saber quem era mais amigo de quem, quem por ventura namorou quem, quem brigou com quem. E, embora essas sejam questões legítimas em certos contextos, parece um grande alívio assistir a um documentário sobre música que é um documentário “apenas” sobre isso: música (enquanto processo, enquanto escolha política, enquanto articulação social, enquanto experimentação radical).
Outra excelente opção é a forma como os realizadores apresentam as entrevistas com os membros do grupo (o já citado Luiz Tatit, mas também Hélio Ziskind, Ná Ozzetti, Ákira Ueno e Zécarlos Ribeiro, entre outros): recorrendo a animações que vão se transformando em consonância com a experiência do público. A princípio, surgem rascunhos bastante simples em preto e branco, que ganham aos poucos dimensão, cor, profundidade, até finalmente darem lugar às imagens em live-action. Essa jornada emula a do espectador, em especial daquele não familiarizado com o conjunto, que a princípio se surpreende com uma proposta musical tão fora do trivial (e aqui o nome Rumo é significativo), para ir se familiarizando progressivamente com esses músicos e sua concepção artística, até sair do cinema com a sensação de que os conhece (e os conhece como artistas, de uma forma profunda e íntima, ainda que sem saber quase nada sobre a vida pessoal de qualquer um deles).
Nesse contexto, ainda que seja um filme despretensioso, e talvez mesmo por sê-lo, Rumo aponta um caminho que deveria ser trilhado com mais convicção pelo documentário musical contemporâneo: a dissecação nua do processo musical com o que ele tem de mais fascinante, em suas dimensões estética e político-social. Que o cinema brasileiro possa lançar um olhar mais agudo para a imensa grandeza da nossa música e tenhamos mais documentários que reflitam sobre essa arte como arena de criação. E talvez (por que não?) menos biografias burocráticas de músicos famosos.
*Maria Caú foi júri Abraccine no 24º É Tudo Verdade