Por Adriano Garrett*
Brasileiros que servem a exércitos estrangeiros; moradores de uma ocupação que outrora foi um cinema de luxo; habitantes de uma cidade conhecida como a “capital do jeans”. São a essas pessoas que três documentários brasileiros exibidos no 24º É Tudo Verdade voltam suas câmeras e seus interesses. Olhar para suas premissas, para o modo como abordam essas realidades e para a maneira como refletem sobre o próprio fazer fílmico é um caminho para entender os resultados díspares alcançados por essas obras.
Em Soldado Estrangeiro (direção de José Joffily e Pedro Rossi), a montagem se guia pelo estágio em que se encontram os personagens retratados em cada grupo de combate: começamos acompanhando um aspirante dando os primeiros passos na Legião Estrangeira; em seguida o foco passa para um integrante do exército israelense combatendo na Cisjordânia; e, por fim, seguimos a rotina de um ex-membro das Forças Armadas dos EUA.
O elo mais sólido construído pelo filme em torno dessas pessoas de classes sociais, raças e histórias tão diferentes é o da motivação financeira. Enquanto o aspirante à Legião Estrangeira tem como um dos principais desejos garantir o sustento e o futuro da filha, o combatente em Israel vislumbra as vantagens que terá na compra de um carro e para cursar uma faculdade após deixar a corporação. É de fina ironia, portanto, o fato de que o veterano que deixou o exército americano há sete anos tenha como principal batalha no presente a tentativa de reverter o status não honorável de sua baixa, pois só assim conseguirá financiar os estudos em uma faculdade local.
Se nesse sentido o trabalho de Joffily e Rossi é coeso, o mesmo não se pode dizer sobre outros aspectos. Em relação ao modo como aborda os personagens, por exemplo, o filme cresce quando predomina o caráter observacional, principalmente no segmento filmado em Israel. Os deslocamentos dos soldados em micro-ônibus lembram excursões escolares graças a comportamentos infantis, característica reiterada pelo tom de suas ligações para os pais; a comparação entre a virtualidade dos jogos de videogame que o personagem aprecia e a realidade na qual ele atua faz lembrar o assustador fato de que aquele adulto imaturo tem amplos poderes sobre a vida de moradores daquela região. Entretanto, não é bem calibrada a dosagem entre esse tipo de abordagem e um estilo mais participativo, com intervenções do diretor com relação aos personagens e dos personagens com relação à câmera.
Isso se nota, por exemplo, na tentativa de questionar o soldado israelense a respeito de seu ofício – que acaba frustrada pelas rígidas regras militares – e ganha corpo no segmento seguinte, no qual o ex-membro do exército americano domina a cena com uma frontalidade não vista nas partes anteriores, andando pela cidade e contando seu ciclo de decadência física e emocional após ter deixado a corporação. Além de destoar formalmente do restante do filme, a terceira parte direciona o espectador para um desfecho quase impositivo: é como se os diretores tivessem pinçado aquele personagem (com aquele histórico, com aquele perfil) para confirmar uma tese anterior ao filme.
Um apego semelhante – e problemático – à premissa do documentário pode ser notado em Cine Marrocos (direção de Ricardo Calil). Seu plano inicial mostra as cadeiras do antigo cinema da capital paulista sendo iluminadas aos poucos por um de seus atuais moradores. Ali, onde 60 anos antes artistas estrelados estiveram nas telas e circularam pelo tapete vermelho, existe agora uma ocupação, e a ideia de Calil é fazer uma ligação entre esses dois tempos históricos. Para isso, reúne moradores para participar de uma oficina de teatro e, em seguida, reencenarem cenas de filmes icônicos exibidos no Cine Marrocos, como A Grande Ilusão (1937), de Jean Renoir, Noites de Circo (1953), de Ingmar Bergman, e Júlio César (1953), de Joseph L. Mankiewicz.
Uma fala de Valter, morador do local e personagem mais marcante, é central para se pensar o projeto empreendido pelo documentário. Ele questiona porque esses, e não outros filmes, seriam refeitos, e pergunta se não seria mais adequado que o grupo trabalhasse com obras mais próximas à realidade de seus componentes: refugiados africanos, imigrantes latino-americanos e sem-tetos brasileiros. O fato de a montagem ter mantido essa declaração no corte final soa como autoconsciência das limitações de sua proposta, mas isso se mostrará insuficiente, com o decorrer da projeção, para atenuar as fragilidades do filme no que diz respeito ao trato com a alteridade.
Por mais que seja muito bem-sucedido na tarefa de recriar cenas clássicas (todas filmadas em um belíssimo preto e branco que ressalta rostos extremamente expressivos dos moradores-atores), e por mais que gere fissuras com a realização desse gesto (seja pela presença de corpos historicamente pouco vistos em tela ou por liberdades criativas como a da utilização de um rap), o documentário não dá o passo seguinte, que seria se atentar para como todo esse processo impactou aquelas pessoas. Exemplo marcante disso é o fato de vermos projeções de filmes clássicos feitas pela equipe do documentário dentro da ocupação, mas não termos nenhum plano dos moradores reagindo (pensando, refletindo, propondo questões) àquelas imagens.
O fetiche cinéfilo se sobrepõe às questões do real quando o filme: resolve se centrar demasiadamente na experiência da oficina de teatro, e com isso perde a chance de construir espacialmente uma ideia de ocupação coletiva (talvez como uma autodefesa à controversa figura da liderança do local); não explora mais a fundo as histórias particulares de cada um dos participantes (o que é uma exceção num cenário de documentários em que as entrevistas costumam soar excessivas); e não consegue perceber que a sua premissa já não era tão importante diante da realidade de um despejo, chegando ao ponto de escolher como último plano uma reencenação de Crepúsculo dos Deuses (aquele clássico significa mais para o diretor ou para aquela mulher que, no tempo da narrativa, acabara de perder um teto?).
Já em Estou Me Guardando Para Quando o Carnaval Chegar (direção de Marcelo Gomes) a premissa é o que costuma ser nos bons documentários: apenas uma premissa. Há a vontade de conhecer Toritama (PE) para além do título de “capital do jeans” (algo representado imageticamente na sequência inicial, que apresenta grandes outdoors publicitários e em seguida mostra, por trás, suas estruturas internas); há o desejo pessoal de reencontrar um local (o agreste pernambucano) e entender como ele se modificou nas últimas décadas; e há sobretudo um desejo de não impor um discurso pronto a uma realidade tão cheia de complexidades.
Quando se depara com uma cidade de 40 mil moradores em que casas são transformadas em pequenas fábricas, quase todos trabalham no negócio têxtil e onde predomina um discurso repleto de pontos cegos em defesa do empreendedorismo individual, Gomes rejeita seguir o fácil caminho de enquadrar sociologicamente aquela situação e aquelas pessoas, e coloca o próprio fazer do filme em questão.
A cena que melhor representa essa recusa é aquela em que o diretor, por meio de voz off, mostra-se incomodado com o barulho das máquinas e com a repetição mecânica do trabalho e decide alterar a banda sonora daquelas imagens. Em seguida, decide flanar pela região com vistas a conhecer pessoas que se distanciam do padrão contemporâneo – e encontra um pastor de rebanhos, uma agricultora, um senhor que “é o único que ainda tem tempo de olhar para o céu”…
A decupagem realizada pelo filme contextualiza as pessoas e os espaços e reflete uma abordagem horizontal com relação os personagens. As intervenções de Marcelo Gomes, tanto nas conversas com os moradores quanto pelo recurso de voice over, surgem não de um modo impositivo, mas como elemento que enriquece a jornada reflexiva do espectador.
Para tratar da falta de perspectivas dos moradores, por exemplo, a opção não é simplesmente mostrá-los discorrendo a respeito de seus sonhos: tais falas surgem junto de imagens realizadas na madrugada em uma feira que acontece todo final de semana na região. É ali um dos poucos momentos do filme em que não há ninguém trabalhando, e a junção imagem-som potencializa a sugestão de que o trabalho não dá tempo para aquelas pessoas sonharem/fabularem. Tal ideia também se difunde através do achado final do documentário, a descoberta de que durante o Carnaval a sempre movimentada Toritama fica deserta. Paradoxalmente, a festa intimamente ligada ao conceito de fabulação é aquela para a qual todos desejam ir, sem medir esforços para isso.
Não poderia haver símbolo melhor para uma realidade em que o futuro não é palpável e a sensação contínua do presente aprisiona a todos, até mesmo aqueles que se definem com orgulho como “empreendedores de si mesmos”.
* Adriano Garrett foi júri Abraccine no 24º É Tudo Verdade.