Por Humberto Pereira da Silva*
O cinema brasileiro mais recente talvez exija uma oxigenada. Uma abertura para novos experimentos, nova forma de olhar. O cinema da Retomada, e mesmo uma pós-Retomada, estabeleceu um padrão. E como todo padrão, joga com expectativas previsíveis e em certa medida, conformistas. Até certo ponto da Retomada, houve um boom do “filme favela”. Com acento nas periferias dos grandes centros urbanos, um olhar para a violência do tráfico, a corrupção policial, as mazelas sócias e tudo que disso decorre. Pode-se traçar a história do cinema brasileiro do início desse século só pela perspectiva “mundo cão”. Nesses filmes, de qualquer forma, estão praticamente ausentes os “espaços de intimidade”, uma dimensão subjetiva das relações, ansiedades, desejos, frustrações ou espaços de expressão cultural. Não que não os há, mas diluídos no coletivo violento das periferias, onde, seguindo certo código de honra, intimidade é coisa de boiola. Isso, esse padrão, possivelmente esteja sendo substituído nos anos recentes por realizações que, no “mundo cão”, aceitam o desafio da imersão nos “espaços de intimidade”. Essa, me parece, uma tendência que se nota nos filmes de Cristiano Burlan. Terríveis pela crueza com que ele mesmo mergulha com personagem em sua tragédia pessoal. Sinceros o suficiente para se indagar sobre masoquismo. Provocadores ao escancarar a hipocrisia na contenção dos dramas humanos. Cínicos ao desdenhar convenções ou separações entre arte e vida. Na trilha aberta por Burlan, toma caminho igualmente os filmes de Lincoln Péricles, que faz a montagem em Tremor Iê, de Elena Meirelles e Lívia de Paiva.
Trata-se de uma fábula distópica perfeitamente reconhecível nas periferias dos grandes conglomerados urbanos. De algum modo Tremor Iê remete ao clima de pesadelo das versões fílmicas de 1984. Um mundo assustadoramente controlado, sem perspectiva, dominado pelo temor. Mulheres que mantém valores culturais ancestrais, e se expressam pela música e pela dança são perseguidas pela presença masculina: a polícia. Elena Meirelles e Lívia de Paiva, ao mesmo tempo em que caricaturam o elemento masculino, imergem no universo emocional, subjetivo e espiritual de mulheres. Há uma mescla de ritos afros e indígenas, que perpassa os gestos e movimentos das personagens. Que relatam boa parte do filme as perseguições que sofrem de agentes policiais. O filme não é construído de modo a ter ação dramática. Imagens quase não exibem eventos vividos por elas. As personagens estão em pares, agrupadas, ou mesmo individualmente, falando na forma de solilóquio. A fala é o ponto de sustentação do filme. As experiências vividas são partilhadas pela voz. Tremor Iê carrega então na oralidade. Uma oralidade, por sua vez, facilmente identificável em jovens de periferias de cidades como São Paulo ou Fortaleza. Vemos a inequívoca tentativa de situar as mulheres no espaço público, ou sinalizar para expressões de cultura como o canto e a dança. Mas o espaço público é tão só pano de fundo para expressão de subjetividade, de revelações que se situam na esfera da intimidade. Uma conversa entre duas protagonistas, à beira de uma fogueira, dura exatos 24 minutos. Mais ainda, entre as duas, não existe propriamente diálogo, mas um jogo de cumplicidade, de acolhimento. Com isso, a fala se torna um longo monólogo, sem, portanto, tensão, desacordos, contrapontos. É como se, na fala, houvesse em alguma medida o sentido de confissão, ou para usar uma palavra mais corriqueira, desabafo.
Temos então, talvez, com Tremor Iê, uma nova maneira de abordar, lançar o olhar para a realidade social crua na qual estão imersas mulheres pobres, negras e índias em nossa sociedade. Tanto quanto nos filmes de Burlan, um mergulho nos espaços de intimidade, com uma crueza que atordoa o espectador que vai ao cinema com a expectativa de não ser afrontado. O filme traz o sentido de urgência com respeito a suspenção de valores que se conformam a uma realidade padronizada, que vive confortável e sem culpa. E assim aponta para o submundo desconfortável da pobreza material na ordem capitalista. E dessa forma traz à tona que o mundo tem camadas, e nessas camadas discursos, formas de expressão e modos de vida para além de shopping center e quiosques em praias ensolaradas. Tremor Iê, realizado com poucos recursos e com elenco não exatamente profissional, é um filme terrível. Como terrível é a realidade na qual está imersa a maioria esmagadora das mulheres negras e índias no Brasil. Ah, sub-repticiamente é abordado o tema do lesbianismo. E ao final presta-se homenagem a Marielle Franco.
*Professor de filosofia e de história do cinema na FAAP