Tremor Iê: Filhas da guerrilha e urgência

Por Orlando Margarido

Tremor Iê, de Elena Meirelles e Lívia de Paiva, é um filme-manifesto pensado para o hoje. Talvez nem mais aquele hoje entre 2018 e 2019, quando realizado e exibido pela primeira vez, mas um presente que se atualiza em tempos pandêmicos, sinistros, sombrios, de contexto de distopia. Daí a inclinação a considerar o longa cearense no âmbito da ficção científica, de futuro próximo diga-se, ainda que a proposta não se firme em gênero único. Pelo contrário. Há evidente objetivo de trabalhar em diferentes registros questões pertinentes a um estado de coisas não apenas renovado na sociedade brasileira, como sobretudo estrutural, enraizado. Violência do poder instituído, machismo, aqui oficializado na exclusão da mulher e de todo um grupo social, quiçá o racismo inerente ao modelo, ecoam um passado que se confirma sempre presente.

A proposta é ambiciosa para um jovem coletivo de garotas em passos iniciais no cinema e isso tem seu preço. Em narrativa errática, com quebras que por vezes valorizam um desalento das personagens, outras soam apenas capricho, acompanha-se o destino de duas amigas após uma delas ser presa em protesto político. Este não é encenado, mas sim contado por outra participante, num exemplo inicial do interessante artifício dramático de adotar formas de expressões diversas. Há um conceito polifônico no filme. Os eventos e reflexões são revelados em diálogos, longas conversas como quando do reencontro das amigas, em monólogos de fonte onírica ou pela via da música. Este último formato, longe de ser mero acessório incidental, contextualiza muito da condição social e de luta em letras engajadas e ritmos de ascendência afro, como o rap, a conga e o coco. Por fim, há a voz onipotente, no caso do “grande irmão” à maneira do “1984″ de George Orwell, que determina a autoridade e assegura a ordem aos ditos “cidadãos de bem” e em nome deles.

De mesma multiplicidade são os métodos de encenação. Quando em movimento, faz as personagens interagirem com a paisagem urbana marcada por edifícios, o vazio das ruas, o contexto noturno em que se sugere ser o permitido às mulheres, àquele estrato social. Em contraponto, adota-se por vezes o modo estático, numa assumida disposição regrada dos corpos, como a representa-los dominantes, guerreiros. Soma-se a esses conceitos de cena o uso da luz natural ou artificial, com propósito imagético. Os efeitos podem conferir mistério, como na fantasmagoria inicial do letreiro do título e na sequência na noite da motocicleta, ou de reflexão desalentada, na luz bruxuleante da conversa ao pé da fogueira.

Tais recursos evidenciam mais o apuro e a invenção das diretoras – e como produto de coletivo, pode se supor da equipe – do que as tentativas de conferir a atmosfera de distopia requerida. Esta se vale aqui e ali de toques fantásticos, a exemplo do símbolo em néon do poder vigente ou do uniforme futurista do “soldado do bem” e seus trejeitos robóticos. O filme flui melhor quando assume aspectos mais realistas, ainda que se possa apontar certa ingenuidade ou mesmo passagens implausíveis. A fuga da jovem presa exemplifica bem os polos da narrativa, titubeante entre realismo e representação simbólica. Na ação improvável, utiliza-se a conhecida “teresa”, corda feita de pedaços de lençol. A peça ganha maior significado, no entanto, ao denotar na feitura a união de forças das companheiras de grupo em auxílio à amiga.

É, portanto, mais no todo do quem em suas partes que o cinema das jovens demonstra instinto. Tem ironia o olhar ao entorno social, cinismo como revanche ao próprio cinismo da autoridade constituída, tanto mais por ser de evidência local. O achado do segmento no roubo dos restos mortais do cearense Castelo Branco, de humor quem sabe involuntário, recoloca o conceito da repetição histórica e alinha-se às demais questões urgentes tratadas. Estas são muitas e talvez em medida por enquanto não compatível ao resultado, mas em esforço sim, e por isso mesmo promissor.

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