
Morreu em 22 de fevereiro de 2022, aos 83 anos, o cineasta Geraldo Sarno, diretor de “Sertânia”, um dos filmes brasileiros mais premiados e celebrados pela crítica nos últimos anos, vencedor inclusive do Prêmio Abraccine 2020.
Ao longo de uma carreira de seis décadas, Sarno retratou movimentos migratórios e a cultura popular brasileira. Nascido em Poções, na Bahia, em 6 de março de 1938, ele estava internado com Covid-19 em um hospital no Rio de Janeiro quando faleceu.
Neste dossiê dedicado à obra e à trajetória de Sarno, você encontra um compilado de trechos de críticas e entrevistas realizadas por associados e associadas da Abraccine.
Também recomendamos o acesso ao site Linguagem do Cinema para quem quiser conhecer mais a fundo a obra de Sarno. Com curadoria do próprio cineasta, trata-se de um acervo digital que se estende do primeiro curta, “Viramundo” (1965), ao último longa, “Sertânia” (2020), incluindo filmes, séries e programas de TV dirigidos por ele, além de vasto material escrito sobre seus trabalhos.
“Sertânia” (2020)

“‘Sertânia’ transborda de ideias. Poderia ser considerado uma obra de cineasta jovem, do tipo que deseja incluir estilos e conceitos demais num único filme. Ora, trata-se de um projeto de Geraldo Sarno, diretor de 81 anos de idade, autor, entre outros, do curta-metragem ‘Viramundo’ (1965), que também abordava fluxos migratórios e a busca pelo pai em paralelo com a busca por um conceito de nação. Cinquenta e cinco anos depois, Sarno retorna ao tema, com reflexos diferentes em um Brasil fraturado, pós-ditadura militar, pós-reconstrução democrática, pós-ruptura da alternância republicana entre direita e esquerda, e pós-golpe de 2016. O valor do Nordeste na construção do imaginário do Brasil se transformou, o valor do cinema ousado e radical, também. O diretor resgata não apenas o filme de sertão, o cangaço e o western, mas também as vanguardas dos anos 1960, os delírios messiânicos de Glauber Rocha; um cinema que grita, que se repete em frases e imagens, fornecendo ao espectador uma vertigem equivalente àquela de seus personagens. Trata-se de uma obra profundamente estilizada, que em nenhum momento esquece a trama e o discurso político ao qual serve.”
Por Bruno Carmelo
“A narrativa é conduzida com a ambição de um diretor que não temeu alternar camadas realistas, contemplando as incursões dos cangaceiros nas cidades, onde se manifesta a ambiguidade das relações do capitão com as elites locais; fantásticas, como a procura de Gavião pelo pai no reino dos mortos (com direito a uma conversa com o pioneiro industrial Delmiro Gouveia, interpretado por Lourinelson Vladmir); e até metafóricas, desnudando o mecanismo da representação ficcional ao mostrar as câmeras e técnicos da produção – o que não deixa de ser uma forma de aproximar os tempos, o da história narrada e o nosso.”
Por Neusa Barbosa

“Antão, o narrador de ‘Sertânia’, interpreta o mundo como alguém que não é protagonista, embora seja o personagem central. Vê o mundo meio de lado. A repressão na figura dos soldados, às vezes enfileirados ao modo do ‘Encouraçado Potemkin’, igualmente parece que não representam a preocupação principal de Antão. Ele sai de cena para dar espaço ao Capitão Jesuíno (Julio Adrião) em suas relações com as elites locais. Note-se que o enredo antecede aos episódios históricos envolvendo Lampião. Os líderes do cangaço estão ainda na fase anterior de ruptura com as elites, por isto, às vezes a repressão do Estado – as volantes – aparecem descoladas dos proprietários de terra e da própria Igreja, que na realidade formam um corpo só. São forças da repressão que se retroalimentam, são interdependentes. Estado, Igreja e latifundiários formam uma aliança Santa e institucional e o filme aponta os embriões desta configuração. Aquele pontual histórico que se alarga e vem se atualizar no hoje, já que o fato de existirem padres e até um papa progressista não transforma a Igreja, como instituição, em aliada dos mais fracos. E a elites, bem, as elites cospem na cara da população diariamente, num looping sem-fim.”
Por Ivonete Pinto
“Sarno parece ter conquistando em ‘Sertânia’ algo que poucos alcançam no contemporâneo cinema brasileiro quando se tem em mente uma pauta cinematográfica tão cara e tão bem explorada esteticamente na década de 1960 – já apropriada inclusive pelo Sarno, com seu ‘Viramundo’ (1965). A pauta cara é a infinita condição de vilipendio sofrida pelo povo (seja rural ou urbano) que, na busca de uma figura paterna, se submete às autoridades, aos coronéis e à bandidagem. E, nesse contexto, apresenta pelo enredo um herói (Antão), ou anti-herói (Jararaca/Gavião), que desperta para esta condição como uma espécie de consciência coletiva e que, a nós – espectadores –, tenta dar um alerta contra esse mal secular tão entranhado na cultura brasileira. Já a, no passado, tão bem explorada estética diz respeito a descontinuidade dos acontecimentos, ou simultaneidade deles, a serviço das motivações pessoais de seus protagonistas sob uma fotografia em P&B superexposta que destaca o contraste da terra sobre o homem e vice-versa. Duas obras-primas do Cinema Novo, por exemplo – ‘Deus e o diabo na terra do sol’ e ‘Os fuzis’ (para ficarmos nos óbvios) –, logo estalam na cabeça ao ver ‘Sertânia’, mas com a distinção do filme de Sarno ser claramente um produto com a personalidade de sua época, e não um arremedo de algo do passado.”
Por Luiz Joaquim
“Coronel Delmiro Gouveia” (1978)

“Um dos aspectos destacados e expressivos de ‘Coronel Delmiro Gouveia’ (Bra., 1978) é a facilidade com que o diretor Geraldo Sarno manipulou o documentário e a ficção para narrar parte da história daquele brasileiro que poucos conhecem e que o cinema se encarrega de resgatá-lo ao seu público. (…) Embora rico em detalhes e observações, o que o filme de Geraldo Sarno vende ao seu público sobre a figura de Delmiro Gouveia ainda é pouco. Há muito mais. No entanto, soa suficiente. Sarno preferiu construir com seu colaborador Orlando Senna um filme que não caísse em longos comentários, nem em abordagens desnecessárias ou em discursos panfletários. Na tradição de seu cinema, que tem obras documentais de peso, ele optou aqui pelo estilo mais realista possível e, exceção ao que existe de ficcional na produção, conseguiu construir uma obra modesta mas rigorosa.”
Por Luiz Joaquim
Entrevistas
Sobre “O Último Romance de Balzac” e a trajetória no cinema
Você classifica seus últimos filmes como “suicidas”. O que isso significa?
“Essas coisas me vieram depois que fiz Tudo isto me parece um sonho. Eu o chamo de suicida por dois motivos. Primeiro, porque é um documentário com duas horas e meia de duração – o primeiro corte tinha quatro horas. Segundo, eu não sabia o que estava fazendo. Então o “suicídio” diz respeito a assumir riscos, de buscar formas diferentes de fazer filmes. Eu não sei me repetir, tenho que fazer algo que não sei fazer. Se eu não sei fazer, isso me instiga. Se eu soubesse o que é, eu não faria. Não é algo meramente estético, porque penso que certos parâmetros de criação são necessários. Digo isso dado o momento do audiovisual contemporâneo, pois tento trabalhar a partir de um marco social e histórico. A questão é ousar a ponto de arriscar não fazer nada mais depois disso. Pode dar certo, ou não, mas se não for assim, você vai fazer a mesma coisa que todo mundo está fazendo. O que termina por ser outra forma de suicídio.”
Por André Dib

Sobre a metalinguagem em “Sertânia”:
“Sertânia” traz momentos de quebra da quarta parede do cinema, algo que nos faz adentrar naquele universo que, somado ao fato de que o longa é uma subjetiva, gera essa reflexão da construção fílmica. Foi essa a intenção?
“A quebra de quarta parede, quebrar o ilusionismo da narração que está se desenvolvendo, para mim, tem como objetivo trazer para dentro do filme uma reflexão sobre o cinema. Sobre a arte do cinema. Sobre linguagem cinematográfica. O filme, nesse momento, indaga o cinema. Indaga o cinema que está sendo feito. O filme indaga o filme. Lembrando, sim, que a obra toda é uma subjetiva. Toda ela se passa na cabeça do Antão. É ele ferido que pensa aquele filme, que pensa aqueles momentos. Que pensa aquele mundo que o filme tenta traduzir em imagens. E essa mente pensa como? Pensa como cinema. O cineasta é a cabeça dele, que faz o filme. Então, para poder tirar a ilusão cinematográfica, para que o cinema adquira uma personalidade mais forte, para que se perceba que aquilo é um filme, é um filme que está narrando, você tem que sair dessa bobajada desse cinema comercial, pura ilusão. O filme tem quebras. Uma quebra é essa.”
Por João Paulo Barreto
Sobre “Sertânia” e futuros projetos
Você não se guia por experiências específicas que ainda gostaria de ter na carreira de cineasta?
“Não, nada disso. O que existe é a possibilidade de continuar nesta meditação sobre o homem brasileiro. É isso que eu faço: penso sobre o homem brasileiro, sobre o que ele é. Faço isso desde Viramundo, desde sempre, tendo o sertão como centro. O sertão é o meu centro. Saltar para outro centro seria um desafio. É claro que já filmei, documentalmente, outros centros, então conheço um pouco. É claro que existe no urbano brasileiro a presença do sertão. São Paulo possui um caráter sertanejo evidente, por causa dos milhares de sertanejos e nordestino que vivem ali. Existem bairros inteiros habitados por sertanejos, eu inclusive já filmei isso. Então a trama poderia ser lá, poderia ser em São Paulo. Poderia ser em Osasco, um município industrial onde existem índios nordestinos. Existe uma comunidade inteira de indígenas baianos, dirigida por uma cacique mulher. Mas este seria um desafio. O sertanejo, o índio, o operário, são figuras que vivem às bordas, mesmo que o operário esteja se liquefazendo.”
Por Bruno Carmelo
Podcast
Na edição #15 do Podcast Abraccine, comentários sobre “Sertânia”, vencedor do Prêmio Abraccine 2020, com participações dos críticos associados Kel Gomes, Francisco Carbone, Amanda Aouad e Renato Silveira.
