Por Ivonete Pinto*, originalmente publicado na revista Teorema em dezembro de 2012
Dar conta do pensamento de Jean-Claude Bernardet é tão difícil quanto abarcar a obra de Paulo Emilio Salles Gomes. Os dois, que foram companheiros na USP, UnB e Cinemateca de São Paulo, possivelmente são as figuras mais equivalentes da crítica quando se trata de uma trajetória expandida em várias áreas ligadas ao cinema. A Paulo Emilio alguns livros já foram dedicados, sendo que o último é o organizado por Maria do Rosário Caetano (Paulo Emilio Salles Gomes – O homem que amava o cinema e nós que o amávamos tanto). Em 2007, para comemorar os seus 70 anos, foi lançado Jean-Claude Bernardet – Uma homenagem, organizado por Maria Dora Mourão, Maria do Rosário Caetano e Laure Bacqué.
Aqui, nos ocupamos com Jean-Claude[1], num texto com perfil de crônica-ensaio, onde a ideia é apenas repercutir algumas de suas falas por acasião da participação na I Jornada de Estudos de Cinema, promovida no IV Festival Internacional de Cinema da Fronteira, em Bagé (RS). A convivência com este teórico ímpar, que tira fotos com fãs e dá autógrafos para alunos de cinema extasiados por conhecê-lo, nos permite pinçar algumas das suas provocações, a partir do nosso próprio interesse temático, tentando espichar a conversa, digamos assim. O apreço ao diálogo, por sinal, é uma das características marcantes de Jean-Claude, que nesse festival atuou não só como painelista no seminário, mas também como uma espécie de consultor (“curador”, foi o termo usado pelos organizadores do evento, mas com o qual ele não se sentiu muito a vontade). Sua mais recente contribuição para o cinema nacional está na divulgação de uma experiência de produção empreendida pelo realizador-oficineiro Júnior Rodrigues (dele falaremos mais adiante), no questionamento ao sistema de produção que opera por unidade e no fato de chamar a atenção para os chamados filmes irrelevantes.
A fala de Jean-Claude no Festival de Bagé (393 kms de Porto Alegre), onde participou pela segunda vez consecutiva por apoiar o formato inclusivo do evento, estava situada no tema que ele mesmo propôs: História e Crítica do Cinema Brasileiro Hoje[2]. Jean-Claude começou sua reflexão partindo de títulos da atual produção pernambucana (que ele prefere chamar de recifense, pois que os filmes são realizados por produtoras da capital): Um Lugar ao Sol e Doméstica (ambos de Daniel Mascaro) e O Som ao Redor (Kléber Mendonça Filho), na foto ao lado.
O pensamento do professor sobre a importância destes filmes já é um pouco conhecido, porque que expresso em seu blog e em conversas aqui e ali e porque ele está sempre se deslocando, ora para participar de festivais, ora para filmar (ele continua atuando como ator). Na verdade, desde o livro “Cineastas e Imagem do Povo” (Brasiliense/1985, Companhia das Letras/2003) que ele denuncia a falta de filmes que trabalhem a elite brasileira. Os títulos selecionados são importantes porque expõem as relações de poder dentro do ambiente doméstico.
Jean-Claude acha que nenhum outro estado produz hoje um cinema tão preocupado com a luta de classes quanto Pernambuco. Esta temática, que enfrenta diretamente o crescimento da violência, passa batida pelas cinematografias de estados como São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. Jean-Claude pergunta: O que está se fazendo no Recife é cinema político? É cinema político por causa de sua temática? E emenda: É político um cinema que não tem público?
E este é o cerne de suas inquietações, que podem ser dividias em duas frentes problematizantes. A primeira, que aponta o público inexpressivo para os filmes que fazem carreira em festivais, e que quando lançados atingem 12 , 17 a 20 mil espectadores se muito. A segunda, que é a forma como majoritariamente os filmes são produzidos, através de renúncia fiscal, que faz com que os produtores não tenham a menor preocupação quanto ao público a atingir porque, afinal, seus filmes já estão pagos quando lançados. Aliás, já estão pagos antes de lançados, o que leva a muitos deles sequer serem lançados.
Estes problemas também foram apontados por outros realizadores de verve crítica a quem Jean-Claude cita. Carlos Reichenbach, em seu depoimento ao documentário A Luz Vermelha do Bandido (Pedro Jorge, 2009) disse que filmes como O Bandido da Luz Vermelha, Deus e o Diabo da Terra do Sol, Limite, Ganga Bruta não são relevantes ao nível de público. Seriam relevantes ao nível da evolução da linguagem cinematográfica. Haveria um divórcio entre a produção cinematográfica e a sociedade brasileira. Jean-Claude menciona igualmetne Eduardo Escorel, que no Festival de Tiradentes (2012) afirmou que o cinema produzido no Brasil é irrelevante. A participação de Escorel em Tiradentes tem um registro em seu blog da Piauí, onde coloca um raciocínio em sintonia com Reichenbach:
Minha impressão é que perdemos a capacidade de pensar sobre cinema como um processo complexo, tendo passado a evoluir sem rumo, privilegiando filmes isolados. O País como um todo voltou a ser uma economia exportadora de produtos agrícolas e de minério, e a ter uma indústria obsoleta. Com isso, o perpétuo dilema entre protecionismo e competitividade, crucial para o setor cinematográfico, foi deixado de lado. A ampla disponibilidade de recursos incentivados, crescente desde 1994 para o cinema, fortaleceu a burocracia estatal que tolhe, por sua vez, a criatividade. Irrelevante no mercado interno e externo, a produção cinematográfica brasileira se tornou perdulária. Mais dia, menos dia, a conta será apresentada.[3]
Reichenbach disse que não é relevante, Escorel que é irrelevante. Jean-Claude recomenda que procuremos as razões desta irrelevância. Ele concorda que a renúncia fiscal redunda num problema, porque se os filmes não forem lançados, não representam nenhuma catástrofe para a carreira dos seus diretores, que poderão tranquilamente continuar captando para outros filmes. “É uma produção que não precisa do mercado para repor suas condições de produção”. E hoje é esta a base do cinema brasileiro que leva à irrelavência. “Uma forma de produção que não precisa de público, se fecha em si mesma”, acrescentando uma segunda razão: as marcas de produção.
Marcas
Jean-Claude defende que todo produto tem suas marcas de produção e a marca mais evidente da atual produção “irrelevante” é a linguagem ambígua, alusiva e elíptica. São formas de linguagem que se dirigem a uma elite cultural. Com esta chave, Jean-Claude volta às características dos filmes pernambucanos, mais especificamente à montagem da última cena de O Som ao Redor, e pergunta quem entenderia a sofisticação daquela proposta e a quem isto interessa. Em seguida cita uma cena de Xingu (Cao Hamburger, 2012), onde a construção do personagem Cláudio (João Miguel) é complexa ao nível da dramaturgia, em função da sua ambiguidade e da narrativa elíptica. A falta de interesse do público frequentador de salas como Cinemark, muito provavelmente passa pela dificuldade de compreensão da narrativa.
Tropa de Elite I (José Padilha, 2007) é lembrado por Jean-Claude para ilustrar o oposto. É a cena em que o capitão Nascimento, em meio a uma ação brutal envolvendo tiroteio com metralhadoras numa favela, recebe uma ligação pelo celular anunciando que seu filho acaba de nascer. Para ele, trata-se de uma dramaturgia brusca, tosca, mas que fez seus 11 milhões de espectadores oficiais. “É a linguagem clara, direta, que nós rejeitamos mas que o público compreende”.
Talvez se o espectador tiver maior contato com a arquitetura do cinema, os filmes com investigação de linguagem ─ os irrelevantes ─ possam ser compreendidos por um público mais amplo. Naturalmente, não é porque Jean-Claude faça a defesa da necessidade de uma produção que alcance grande público, que tenha perdido o interesse em filmes com linguagem e estética mais sofisticadas. Muito antes pelo contrário. Em Bagé, por exemplo, ficou entusiasmado com um jovem estudante de cinema de Pelotas, Lucas Sá, e seu Membro Decaído. Em função da dificuldade com a visão, Jean-Claude por vezes perde detalhes, pequenos gestos na tela, mas acaba enxergando a essência de filmes que nós mortais não percebemos. Ele pode não ter visto quem é a mulher que no final do curta ataca o protagonista, mas viu um absoluto domínio narrativo em Lucas, através da imagem e do som (palavras de Jean-Claude, inclusive). E disse mais: o domínio do uso da música é essencial em um filme e é onde muitos cineastas se perdem, por não saberem escolher a trilha, ou pelo uso exagerado dela.
Com isso, Jean-Claude avaliza o resultado do júri, que deu o prêmio de Melhor Filme a Lucas Sá na Mostra Internacional, e de de Melhor Filme da Mostra Regional a O Bife, de Antônio Almeida (um documentário contra o consumo de carne numa cidade como Bagé, em meio a fazendas de gado, foi uma decisão provocativa da curadoria e do júri).
Jean-Claude é um padrinho para o Festival de Bagé ao prestigiar o trabalho do diretor artístico, Zeca Brito. Com sua presença, não só valorizou o evento, como direcionou rumos, sugerindo filmes, instigando todos os participantes à reflexão. Uma de suas contribuições foi propor ao festival uma mostra dos filmes de Júnior Rodrigues, um amazonense que faz oficinas com pessoas sem qualquer vínculo com o cinema, nem mesmo como espectadores. Promove uma produção naïf, sem valor artístico, mas de impacto social.
Jean-Claude “adotou” o descendente de índio Júnior Rodrigues, que até morou em seu apartamento em São Paulo por um tempo. Acha que tem uma conexão mística com a mata, por isso o “efeito” Júnior em sua vida. Principalmente, por trás desse interesse há uma crença de que a experiência praticada pelo amazonense possa ser relevante por realizar a inserção social. Questionamos o professor sobre a validade de um projeto de oficinas como esta, pois existe, embora involuntariamente, uma intrínsica venda de ilusão do tipo “agora sou artista, vou ganhar dinheiro, vou trabalhar na Globo” (não esqueçamos o que aconteceu no neorrealismo italiano). Afinal, fazer filmes resultado de oficinas, que só por acidente chegarão ao circuito comercial, não muda a vida das pessoas. Enfático, Jean-Claude diz que muda. E dá como exemplo casos de jovens que fizeram as oficinas e puderam rejeitar o apelo às drogas. Replicamos que iniciativas como essa tratam o cinema apenas como instrumento assistencial, como se fosse uma bola. Equivale ao trabalho que alguns ex-jogadores fazem ao fundarem escolhinas de futebol para crianças carentes e, com isso, as afastarem do caminho das drogas. Pode dar belos resultados para talentos indivisuais, mas a chance de um desses garotos virar Neymar é um pouco maior do que um cineasta de oficina virar Glauber.
A honestidade de Júnior Rodrigues nesta e em várias outras iniciativas que comanda, em nada tem a ver com este questionamento e tudo isso, ao final das contas, é compreensível no âmbito dos festivais de cinema, pois eles viraram saída para a falta de acesso aos filmes e, cada vez mais, esforçam-se na tentativa de criar ações de inserção social para garantir patrocínios politicamente corretos das estatais. Os governos fazem de conta que estão agindo e os festivais que estão ajudando. Temos mais de 300 festivais para exibir filmes irrelevantes e promover oficinas para que sejam feitos mais filmes irrelevantes. No caso de Júnior, irrelevantes até para a linguagem.
Outras saídas
Retornando à questão da linguagem e do sistema de produção, temos aqui três nomes de respeito que comungam da mesma noção de um cinema relevante para a linguagem, mas irrelevante para o público, e os três têm perfil similar: Reichenbach foi cineasta e crítico (atividade esta não formal), Eduardo Escorel é cineasta e crítico e Jean-Claude é crítico e sempre manteve um pé na feitura do cinema, seja como roteirista, ator ou diretor (no momento dirige um filme com produção de Tata Amaral e é co-diretor com Carlos Adriano de um found footage que vai dar o que falar, embora a vocação para a categoria irrelevante). Ou seja, esta consciência de que as coisas no Brasil precisam tomar outro caminho, vem de vozes que conhecem o sistema de produção por dentro e estão (estiveram, no caso de Reichenbach, falecido em junho de 2012) envolvidos nele.
Outros críticos-realizadores podem estar em sintonia com esta consciência, mas suas vozes, desconfia-se, ainda são irrelevantes também. Irrelevantes porque quem contribui para os processos decisórios sobre o sistema de produção tem foco no cinema por unidade, nos filmes isolados. Soa antipático falar que as leis de incentivo podem ser danosas e supersimpático dizer que o problema do cinema brasileiro é a invasão americana. Ok, mas por que as leis de incentivo não garantem a capitalização das produtoras e, portanto, não garantem a continuidade da produção? Quem chega mais perto do poder, como o Conselho Superior de Cinema e o Comitê Consultivo da Secretaria do Audiovisual, briga para que as tramitações sejam menos burocráticas. Há um desespero legítimo por desenredar a burocracia que emperra as produções, mesmo de projetos unitários. Burocracia cultivada em nome da transparência, para impedir a corrupção, mas que poderá comprometer o êxito da bem-vinda Lei do Cabo, sendo que alguns canais de TV já optaram por autofinanciar seus produtos, pois esperar pela liberação de verbas aprovadas seria inviável. Entretanto, a discussão de por que nossos bons filmes não caem no gosto do público não é tratada nestas instâncias, talvez porque o tripé que guia as políticas públicas da cadeia produtiva do audiovisual ─ capacitação, produção e difusão ─, esteja um tanto frouxo. “Capacitação” não se resolve só com oficinas (nem mesmo só com cursos de graduação); “produção”, se organizada apenas filme a filme, sempre será refém das leis de ocasião, e “difusão” não se resume a aumentar a cota de tela. A que se ocupar a tela com filmes relevantes para o público e para a linguagem, mas isto já é ser utópico demais….
Em um exercício futurístico, porém verossímil, poderíamos prever que teremos fortalecido no Brasil um outro tripé: 1) com a lei do cabo mais e mais produções poderão, a exemplo da TV americana e suas séries, levar ao público roteiros inteligentes; 2) os filmes irrelevantes, como o ótimo Doméstica, ficarão em nichos ocupados por salas alternativas, cineclubes e internet, e terão que gastar menos (ainda) em suas produções, procurando um equilíbrio entre o orçamento e a quantidade de público a atingir; 3) restarão para as salas comerciais de cinema as comédias chulas, os filmes espíritas e alguns musicais.
Em um outro exercício futurístico, este mais otimista, poderíamos enxergar que o divórcio do público com o cinema brasileiro, acentuado em relação ao cinema irrelevante, muito provavelmente não seja resolvido com a nova lei do Sistema Nacional de Cultura (integração das políticas entre a União e os Estados). Porém, o redirecionamento dos recursos para a educação, conforme a lei do pré-sal, possa dar uma turbinada, a longo prazo, na capacidade cognitiva dos brasileiros. E filmes irrelevantes poderão enfim ser compreendidos e valorizados. Utopia demais…?
Mas enquanto o País de bem nutridos física e intelectualmente não se materializa, vamos tentando entender este mal-estar que carregamos nas costas. Há 34 anos Jean-Claude escrevia no jornal Última Hora: “O cinema brasileiro está indo muito bem, aumenta o público, aumenta as rendas. A conquista do mercado está indo de vento em popa.”[4] A frase de abertura que comemorava o aumento de público logo revela-se ironia, pois o que estava em cartaz eram apenas alguns títulos brasileiros, como Lúcio Flávio, A Dama do Lotação, O Cortiço e Jeca e seu Filho Preto. O inimigo apontado, o cinema americano, ocupava dois terços das salas. A grande maioria dos filmes nacionais, de “menor vulto”, conforme Jean-Claude, estava marginalizada. “O que vai bem, não é exatamente o cinema brasileiro, mas sim parte dele: os grandes lançamentos que se pagam rapidamente e têm elevados os índices de lucros.”
Paulo Emilio, ainda nos anos 50, reclamava da falta de comunicação, “no espaço e no tempo, entre os diferentes setores nacionais que pensaram e pensam sobre cinema”.[5] Hoje talvez não faltem “setores” a pensar nosso cinema; falta uma visão em ângulo plongée, que permita uma perspectiva mais abrangente. Ou talvez, quem sabe, devamos convocar psicanalistas, e não cineastas, produtores ou críticos, para ajudarem a entender o processo de distanciamento do público. Roteiros ruins por conta da nossa histórica desprovida relação com os livros, ingressos caros, concorrência da televisão, baixo perfil intelectual, descompromisso com bilheterias devido à renúncia fiscal… tudo entraria no divã. Com ajuda de Freud, investigaríamos se no complexo dos sem-público (os irrelevantes), o Estado representa o pai ou a mãe. E na impossibilidade desta tentativa também dar certo, poderíamos concluir que é a procura por um projeto eficaz, ou seja, a tentativa de uma solução, que faz a diferença e é em si uma solução. Como concluiu Chris Marker, as revoluções não deram certo no que tentaram, mas a existência delas transformou a política do nosso tempo.
Nossos sucessivos fracassos nos reabilitarão?
[1] Escusas aos mais rigorosos pela quebra da norma, mas assim como cultivamos a sem-cerimônica de chamar Paulo Emilio Salles Gomes apenas de Paulo Emilio, fazemos o mesmo com Jean-Claude.
[2] A mesa, mediada pelo professor Tiago Lopes (Unisinos), também foi composta pela autora deste artigo, com o subtema da crítica a partir de sua organização formal no Brasil.
[3] Escorel, Eduardo. Desabamento e batuque. In: http://revistapiaui.estadao.com.br/blogs/questoes-cinematograficas/geral/desabamento-e-batuque
[4] Ver facsimile do artigo “Cinema Brasileiro: se melhorar, piora?”, em Jean-Claude Bernardet – Uma Homenagem, op. cit.
[5] Crítica de Cinema no Suplemente Literário – Vol. I. “A vez do Rio”, 8, nov, 1958.
* Doutora em cinema pela ECA/USP, docente nos cursos de Cinema da Universidade Federal de Pelotas e vice-pres. da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine)