Algumas impressões sobre os filmes e escolhas de Brasília 46
João Carlos Sampaio (BA)
A mostra competitiva de longas-metragens de ficção do 46º Festival de Brasília apresentou diversidade temática e estética. Reforçou a ideia de um cinema brasileiro que aposta em possibilidades muito caras aos seus realizadores, individualmente falando. Um cinema baseado em investidas (pode-se dizer, verdades) autorais/pessoais.
Pensando nesta seleção como se fosse um instantâneo, indícios do que nossos cineastas andam fazendo, não tenho qualquer dúvida quanto ao acerto curatorial, a despeito de desconhecer o horizonte dos filmes que ficaram de fora. Brasília 46 deu muito gosto de ver!
Cada um dos seis filmes apresentados merece – e certamente terão – um espaço maior para reflexão, quiçá ainda melhor decantados pelos dias, pois, confesso, continuam rodando na minha cabeça. Por hora, tento fazer um pouco do exercício que o júri realizou: pensá-los em conjunto, observando suas singularidades.
O primeiro dos longas de ficção que foi à tela, Os Pobres Diabos, de Rosemberg Cariry, já havia visto dias antes, no encerramento do 23º Cine Ceará. Na capital federal, revi até o ponto em que foi projetado na tela do Cine Brasília, naquela noite do dia 18. Novamente ficou-me a impressão de que Cariry conseguiu articular seu discurso mais fluente até aqui.
Os Pobres Diabos se interliga, sem reservas, com o cinema que ele traça ao longo de sua tão respeitável carreira, cheia de filmes que partem do universo da cultura popular, mas que encontram uma articulação sofisticada, tão grave e inteligente como a fala educada do diretor.
Pareceu-me, no entanto, que, particularmente nesta jornada, o barroquismo da sua mise-en-scène acena solidário à pele calejada de sol, aos infortúnios e à poesia dos seus personagens. É como se a doçura triste d’O Palhaço, de Selton Mello (que abunda em Chaplin), encontrasse um chão mais esturricado e a dureza das urgências mais banais; água e comida.
Depois da Chuva (imagem acima), mesmo baiano e nordestino, parece um filme de outro Brasil. Ao invés de falar de tempos eternos como Os Pobres Diabos, localiza-se num tempo histórico específico – a redemocratização do país – para falar da juventude dos anos 1980, mas com expressivos e inesquecíveis jovens dos anos 2010 nos papeis centrais.
Fala, assim, da juventude de qualquer tempo, de sonhos, rebeldia, da busca por um lugar no mundo. Seus diretores, Cláudio Marques e Marilia Hughes, encontram eco no cinema de Olivier Assayas, são estreantes que querem – e conseguem com este filme – dialogar com o cinema do mundo, sem perder o ranço de seu habitat, impresso na fala e no jeito de estar no mundo de seus personagens. Há sabedoria ao fundir “juventudes” de tempos distintos.
Avanti Popolo, de Michael Wahrmann, outro cineasta estreante em longas-metragens, demonstra uma crença num cinema construído com extremo rigor. Não há uma única situação gratuita na criação de um universo dramático preenchido por tipos humanos lançados não à representação naturalista, mas ao terreno do simbólico narrativo.
É uma obra de cinema apaixonada por cinema. Dentro do próprio filme traz outro filme, na verdade, uma remontagem de trechos de velhas fitas, que sintetiza o esforço criativo do realizador em ressignificar a imagem… Imagem, essa coisa mágica que trespassa e fricciona o real com suas próprias regras, mas aqui organizadas pelo olhar generoso de quem nos provoca por (e com o) seu discurso.
Desde a escalação do elenco o filme estabelece camadas, que vão se multiplicando no seu vigoroso jogo de espelhos.
Amor, Plástico e Barulho (ao lado) traz Renata Pinheiro (estreante em longa-metragem de ficção) repercutindo o universo da música popular, que seu parceiro na vida e no cinema, Sérgio Oliveira, já havia apresentado, com outro pernambucano, Petrônio de Lorena, no curta-metragem Faço de Mim o Que Quero.
Partindo do tão específico e rico cancioneiro recifense, propõe-se a construir fábula, encenar algo bem mais universal, a passagem do bastão de uma geração a outra, aqui encurtada pelo fenômeno do consumo, que determina o rápido esgotamento do novo e seu viço.
Naquilo que falta como maturidade dramática, Amor, Plástico e Barulho compensa – com sobras! – com transpiração, cheiro, cor, brilho e energia do seu elenco (especialmente o feminino), na sua dedicação em recriar – com respeito e força vital – o mundo que o inspira. Daí tira tanta pulsão e se faz sentir antes mesmo de ser interpretado.
Riocorrente, de Paulo Sacramento, que já nos tinha oferecido uma imersão densa com o seu documentário O Prisioneiro da Grade de Ferro, é mais um filme de mergulho, mas de um jeito bem diferente de Amor, Plástico e Barulho.
Há amor e violência irremediavelmente amarrados no seu discurso, uma história que parte do cotidiano, mas que quer ser mitologia, mangá, incêndio.
Sacramento não faz concessões ao pintar um retrato de São Paulo (mas também da vida urbana e de “nosso tempo”), que se aparelha a partir de tipos funcionais, criando uma ambiência simbólica – somente para usar um termo da moda – de grande “potência”.
Impressiona como Riocorrente consegue ser, ao mesmo tempo, cerebral/cirúrgico como criação audiovisual e tão devotado a expressar de maneira selvagem uma concretude de sensações/sentimentos, alimentando de imagem e som um lugar que antes parecia ser comum apenas à poesia, de Pignatari (e Chacal, por que não?) a Criolo.
Por fim, Exilados do Vulcão, de Paula Gaitán. Perfeita, aliás, a escolha deste para a última noite da mostra competitiva, porque é um filme que acaba acomodando a avidez de cinema que aparece em Riocorrente e Avanti Popolo, o lirismo de Os Pobres Diabos e Depois da Chuva, e, certamente responde à fúria doce de Amor, Plástico e Barulho com uma delicadeza que se faz indomável por outras vias, seus arrebatadores silêncios brancos.
Não sei dizer se Exilados do Vulcão – peculiar na criação das suas situações tão musicais (mesmo quando não há música) ao abordar perda, afeto (outro inevitável termo da moda) e memória – é melhor do que os outros cinco.
Aliás, também não sei dizer exatamente qual dos seis filmes mais me agrada. Exatamente por isto me parece que a escolha do júri por esta obra é um acerto que acomoda uma seleção bem difícil de comparar.
Estou no rol dos que detestam resultados pulverizados, firme na crença de que quando um festival premia todo mundo parece não premiar ninguém. No entanto, acho que Brasília 46 é exceção para confirmar a regra.
Considero sábio e salomônico o trabalho do júri oficial porque soube reverenciar cada obra, mais ou menos, naquilo que residia a sua força, os seus gritos e sussurros mais audíveis aos olhos. Assim é que a integridade de Exilados do Vulcão parece caber bem no prêmio de Melhor Filme.
Felicidade também na escolha do júri popular, ao premiar Os Pobres Diabos. Soou como uma conspiração ladina dos orixás da sétima arte para completar a decisão dos sete jurados oficiais e para que reinasse o equilíbrio num ano tão especial do Festival de Brasília.
Dizer mais o que? Que o festival – a partir dos mantenedores deste espaço tão sagrado do nosso cinema – deve sim acreditar na ação divina, mas também se precaver um pouco mais, investindo em soluções administrativas para que, cada vez mais, as projeções façam jus aos filmes, e, cá para nós, é preciso rever a ideia de separar os filmes em categorias.
Ao invés de valorizar os documentários e as fitas de animação, esta decisão por categorias apenas acaba colocando-os num limbo que não merecem, diminuindo o espaço de apreciação para propostas tão especiais como O Mestre e o Divino e Morro dos Prazeres, só para citar duas obras de outra mostra que mereceria/merece toda a minha atenção, mas que agora não me detenho porque este ajuntado de impressões se detém no recorte mais visível para se tornar menos cansativo.
Aliás, falando em exaustão (e preguiça, por que não?), quem leu isto aqui pulando parágrafos basta saber que eu disse: Que seleção! Que festival! Que belo resultado! Tanto assim que quase me dá vontade de subir na mesa e gritar: “Viva o Cinema Brasileiro!”, mas estou escrevendo numa tarde cheia de brisa à beira-mar, aqui na praia de Amaralina, Salvador, Bahia, onde todo ímpeto físico sucumbe ao balanço da rede.
Exilados do Vulcão: breves considerações sobre o filme e o prêmio em Brasília
João Nunes, Correio Popular de Campinas (SP)
Assim como em Gramado, em agosto, a premiação do 46º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro decepcionou. E não por causa dos respectivos vencedores (Tatuagem, de Hilton Lacerda, no primeiro; Exilados do Vulcão, de Paula Gaitán, no segundo), mas por conta de equívocos rotineiros e, principalmente, pela farta distribuição de prêmios proposta pelos respectivos júris oficiais.
Em Gramado, Tatuagem levou três Kikitos (excluído o Prêmio Abraccine), fato que minimiza a importância dele em relação aos concorrentes, ainda mais se considerarmos que o diretor não foi premiado – os eleitos foram dois jovens cineastas (Andradina Azevedo e Dida Andrade) de A Bruta Flor do Querer, que não têm peso para tal premiação. A eleição do melhor filme de um festival está estreitamente ligada ao trabalho do diretor e de categorias importantes. Há exceções, sim, mais causa estranheza que o filme seja o melhor, porém, prescindido de seu diretor.
Quase o mesmo cenário se repetiu em Brasília: a distribuição de estatuetas diminuiu o valor que o júri tentou atribuir ao vencedor. É verdade, que não havia nenhum grande filme – diferentemente de Gramado. Entre os seis concorrentes, com exceção de Os Pobres Diabos (Rosemberg Cariry) e Amor, Plástico e Barulho (Renata Pinheiro), qualquer dos restantes poderia sair vencedor. E, surpreendentemente, o escolhido ficou com apenas dois Candangos enquanto três outros filmes levaram três cada.
E se em Gramado houve equívoco na premiação do diretor, em Brasília a escolha de Michael Wahrmann (Avanti Popolo) pode ter sido correta, porém, por ser eleito o melhor, o longa de Paula Gaitán deveria ficar com o prêmio, além de outras categorias relevantes. Na visão do júri, Exilados do Vulcão (ao lado) se credenciou como o melhor, porém não teve força para conquistar mais que um (merecido) prêmio técnico – o de som.
Estes dados técnicos explicam um tanto da perplexidade que a premiação causou em Brasília. O júri escolheu, mas nem ele próprio se convenceu. Para o bem e para o mal, o resultado dá ao referido filme a real dimensão que ele possui, ou seja, controvertido por natureza. Não sem razão, boa parte dos jornalistas presentes em Brasília o rejeitou – em que pese seus defensores e as razões que eles têm para apoiá-la.
Não se trata de buscar unanimidade, mas de tentar entender porque a divisão de opiniões foi tão gritante. Houve reações contrárias tão fortes quanto as favoráveis, mas as primeiras soaram bem mais estridentes. E não exatamente porque o filme saiu vencedor (como se disse, não havia nenhum grande competidor). No entanto, ficou evidente durante e após a exibição a sensação de mal-estar expressa por muitos jornalistas. E por que Exilados do Vulcão provocou reações tão contrastantes? Pensar sobre o filme talvez traga alguma luz.
O filme
Em primeiríssimo plano, Exilados do Vulcão explode aos olhos do espectador pela beleza, sua maior credencial e a razão mesma da existência dele. Daí que a fotografia deveria ser premiada, pois toda a concepção da direção se apóia nela. E a projeção impecável e grandiosa atestou tal beleza. A sequência dos planos forma um conjunto extremamente cuidadoso e uma raridade no cinema brasileiro.
A impressão inicial é a de que estávamos diante de uma grande obra cinematográfica e plástica – e talvez seja. No entanto, a beleza, aos poucos, torna-se imperativa. O que seria assessório transforma-se na essência, o que seria linguagem vira o conteúdo, a íntegra, o todo. E somos convidados a desfrutar (ou suportar) a longa contemplação de uma obra de arte – a diretora na condição de artista plástica dispondo do cinema para expor quadros; afinal, um direito que lhe cabe.
Entende-se a rejeição (por parte da cineasta) da linguagem cartesiana ou ao fato de ela não conferir muita importância aos princípios dramatúrgicos aristotélicos. Tais princípios surgem em resquícios aqui e ali apenas para dar sustentação ao que Paula considera o mais importante, ou seja, o modo peculiar de contar uma história que, ao final, transforma-se em exercício estético que prescinde de diálogos e, em voz over, usa e abusa de signos poéticos.
Entende-se também a busca da diretora pelo sensorial e pelo desejo de criar uma atmosfera que explore essa sensorialidade. Porém, tal busca se vale de uma imensidão de simbologias, muitas indecifráveis, que se repetem exaustiva e reiteradamente ao longo de excessivos 125 minutos – correndo o risco de ser chamado de censor, que caberiam muito bem em 90.
Esta impressão leva a uma pergunta crucial: seria o filme de Paula Gaitán, apenas um exercício sobre o belo; exercício e beleza que se bastam em si mesmos? Tal impressão não desmerece a obra (longe disto), mas questiona a supervalorização que se possa ter dela. Se a constatação procede, o filme não merece o prêmio recebido. Se não procede, estamos diante de um trabalho que exige atenção e análise. Provavelmente, se lançado nos cinemas, ele deverá ficar restrito ao gueto da academia e dos cinéfilos. Entretanto, seria apressado e inconsequente jogá-lo na vala comum de obras de que não gostamos porque não entendemos. Assim, mesmo com todas as contradições, seria salutar tentar entender o filme e a escolha do júri de Brasília.
Exilados do Vulcão e Minas Gerais
Paulo Henrique Silva, Hoje em Dia (MG)
Extremamente nervosa, Paula Gaitán quase não subiu ao palco para receber o troféu Candango de melhor longa-metragem de ficção do 46º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. Diretora de Exilados do Vulcão, filmado em Minas Gerais, a viúva de Glauber Rocha foi contida, durante a cerimônia de premiação, por uma barreira de amigos na escada da plateia do Cine Brasília, entre eles o cineasta mineiro Ricardo Alves Jr.
Não foi a única vez que Paula tentou escapar do anúncio dos vencedores. Já do lado de fora, a equipe ficou de olho na realizadora para que ela não fosse embora, principalmente após a organização adiantar que receberia um dos troféus. A expectativa só aumentou. Sem acreditar que Exilados do Vulcão pudesse ganhar o grande prêmio da noite, resolveu deixar a sua poltrona quando ouviu que seu nome não foi chamado para receber o Candango de direção, entregue a Michael Wahrmann (de Avanti Popolo).
A atitude de Alves Jr., que não se preocupou em levar uma bronca de Paula (“Se isso for uma brincadeira, jamais esquecerei”, alertou a cineasta) ao fechar com o corpo a passagem para fora do cinema, valeu a pena. A reunião da equipe no palco coroou um trabalho de forte experimentação de linguagem, inspirado no romance Sobre a Neblina, da escritora mineira Christiane Tassis, lançado em 2006, após conquistar a bolsa de criação literária da Flip – Festa Literária Internacional de Paraty.
A história acompanha um fotógrafo (o italiano Vincenzo Amato, de Novo Mundo) que, prestes a perder a memória, solicita a uma jornalista e ex-amante para refazer sua trajetória a partir de quatro mulheres com quem se relacionou. “Tenho essa questão da morte e da vida dentro de mim”, observa Paula, no debate realizado horas antes da premiação. Ela brinca com seu nome e com a palavra “paulatinamente”, ao se referir ao estágio de perda de memória do protagonista.
A narrativa apresenta longos planos contemplativos e inquietantes que rementem ao cinema do diretor russo Andrei Tarkovski. Mas Paula garante não se guiar por uma nenhuma referência. Pelo menos, diretamente. “A gente acumula uma série de informações ao longo da vida. A nossa mente é um HD lotado de questões que aparecem lentamente. Os filmes transitam no imaginário de uma maneira não muito concreta. Meu cinema é um exercício do cotidiano”, sublinha.
O processo de construção do roteiro obedeceu, de acordo com a diretora, a um movimento circular e longo para conseguir um sentimento, distanciando-se e aproximando-se do livro. “Não desperdicei nada, tudo é fundamental no fundo. Nesse vai e vem terminamos esgotados. É por isso que muitas pessoas da equipe vão deixando o barco. Sou muito ávida e obsessiva e quem não fica do meu lado de maneira constante acaba saindo. O processo é muito importante”, salienta.
A relação com Minas Gerais é um ingrediente forte na receita do filme. “Gosto de Minas. É um Estado que me identifico. Sou filha de pai colombiano e mãe brasileira. Quando morei em Cúcuta, na fronteira com a Venezuela, achava o lugar muito parecido com Minas. Ao filmar em Cataguases, senti uma familiaridade com aquela terra vermelha. Numa história sobre reminiscências, o filme reverbera também paisagens que já existiam em mim. As locações sempre foram importantes em meus filmes”, destaca.
A atriz Clara Choveaux, que também tem uma forte relação familiar com Minas Gerais, elogia a condução de Paula na forma como “me trouxe para a intimidade dela”. Lançada na produção francesa Tiresia (2003), no papel de uma transexual, Clara registra que viajou várias vezes a Cataguases para “deixar a Natureza se embrenhar e obter uma calma que normalmente não tenho. Com a liberdade que a Paula nos deu, eu pude me jogar naquele precipício de bauxita lá embaixo. Foi muito desafiador”, ressalta.
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