Por Cid Nader (www.cinequanon.art.br)
Pelos últimos recentes tempos, coisa de poucos anos, na realidade, o advento das câmeras ligeiras, da facilidade na captação das imagens, da abolição da necessidade do trabalho mais complexo e demorado da revelação dos filmes, dentre diversos fenômenos perceptíveis que causaram mudanças de linguagens e até na opção de motes no cinema, foi no documentário que se notou uma novidade mesmo bastante modificadora na maneira de escolhas sobre o que seria de real importância para ser trabalhado e processado com intuito de se fazer peça para o público amplo: a opção dos docs intimistas, familiares, onde o contar coisas de cunho pessoal retirou de cena as histórias e seres mais impactantes, cedendo espaço para algo que, em passado não muito distante, pareceria muito mais justo se visto numa festa de aniversário, na celebração de bodas de casamento quaisquer, mas entre as paredes de um lar ou de salões de festa recheados por pessoas dum mesmo núcleo de reconhecimento, com a maior finalidade de celebrar instantes.
Causou muito assombro notar que festivais e mostras passaram a ceder a cada ano mais espaço para esses trabalhos que pareciam – num primeiro e mal humorado instante de observação – mais coisa de álbum de família, que deveria importar muito pouco mesmo aos que buscavam mais “conhecimento”, muito menos nos amontoados desses eventos sempre tão propícios a abrigar e revelar grandiosidades/preciosidades/estranhezas. Na realidade, muito desses filmes feitos com câmeras ligeiras – que a cada ano ficavam mais ágeis e leves, e muito mais plenas de recursos que incentivavam qualquer filho a imaginar o casamento dos pais algo de similaridade aos dramas da vida de Maria Callas, por exemplo – eram realmente um repassar de impressões de caráter totalmente pessoal, com pouca ousadia estética na crença de que sensações quase individuais seriam o suficiente para cumprir a função de emocionar milhares de curiosos.
Com a constatação de que esse fenômeno parecia mão sem retorno, na evidente sensação crescente de que o público estrangeiro aos fatos (ou pessoas) retratados estava comprando o modelo, a observação sobre a questão passou de um estágio de mau humor ao de tentar entender que num mundo onde as idiossincrasias sempre foram motivo de geração de curiosidades (e de histórias, e de lendas, e de artes a partir de um ponto que pereceria comum), talvez estivéssemos mesmo somente cumprindo mais um estágio da formação/construção documento-cinematográfica. O que ainda não caia bem era notar que a arte – nos seus estágios técnicos e estéticos – estava cedendo em qualidade ao fenômeno, e que esse viés narrativo talvez devesse ser aceito mesmo como algo de matiz sociológica, mantendo-se a torcida para que num dado momento da vida a boa adequação por mais capricho na utilização das ferramentas passaria a resgatar mais espaço.
Nem tanto à frente nessa angústia entre o aceitar e o prantear chegamos a esse ano de 2014 para constatar diretamente, ostensivamente – como efeito de remédio possante aplicado na veia –, dois petardos de sentimentos absolutamente pessoais, colocados em tela sem nenhum medo de que se os notemos como algo que não é grandioso sob quaisquer contextos históricos, já que tratam de questões íntimas demais: o É Tudo Verdade nos presenteia como primeira chance com a peça (um curta-metragem) de elaboração apropriatória e manuseio preciso na edição, que é o Sem Título # 1 : Dance of Leitfossil, do Carlos Adriano; e um “doc tríptico”, o Homem Comum, onde Carlos Nader trabalha com a história de um homem comum, um ser uno, afinal, mas valendo-se de ideias que o fazem compreendido restado da confluência de três obras (manuseios) distintas. Ambos os Carlos são craques reconhecidos nisso que é o cinema em que trabalham e, pensando bem, sempre se colocaram de modo mais intimista em suas obras. Perceber neles uma espécie de “ressurreição” no bom trato estético ao modelo intimista que ganhou espaço nos últimos tempos talvez nem devesse surpreender tanto.
Sem Título # 1 : Dance of Leitfossil, um raro curta-metragem que se apropria de elementos para contar de saudades.
Pensar que o trabalho de Carlos Adriano possa ser pensado hermético demais – direcionado somente a quem o conhece e reconhece o que houve de mais importante em sua vida -, principalmente no instante em que ultrapassa a barreira da graça entre a combinação de um “Desfado” e a dança sempre inacreditável de Ginger&Fred, para inserir flashs de seu amado Bernardo, risonho diante de algo que deve ter sido de apreciação comum e sapeca, consegue trazer ao topo de qualquer discussão a necessidade que se faz constantemente na cobrança de mais sagacidade e compreensão dos públicos diante do que não lhes é entregue mastigado e deglutido: deveria ficar evidente (e fica), mesmo para quem não o conhece, nem à sua vida, que há ali (aquela figura sorridente e envergonhada) alguém de seus meios, que essa pessoa se diverte e representa momentos de sua memória mais afetiva.
Há no documentário (ou qualquer outra definição menos seca e dura que se poderia imaginar para o filme), toda essa utilização do pessoal para ser revelado além das quatro paredes de casa, mas com essa bela novidade notada nos dois filmes aqui comentados que refere ao máximo do apuro técnico, ao desejável cuidado com a arte do cinema: a combinação da música com a dança se faz de modo que não seria possível se não houvesse compreensão máxima da utilização das ferramentas, da compreensão mais elaborada do que é cinema. Não resultaria tão mais plástica do que já é pela capacidade dos dois dançarinos se não tivessem sido potencializados os contrastes no PB (como se Adriano tivesse “limpado” a película de onde retirou as imagens), se não houvesse a percepção de que a música cantada por Ana Moura conseguiria conduzir a dança passo a passo, sem equívocos ou mínimas falhas na composição do todo.
E então acontece a contradança, uma nova chance, como são aqueles instantes oníricos que trazem imagens de felicidades perdidas e que lamentamos ansiosos por demais no momento do despertar. Enquanto aceleram-se as aparições de Bernardo – numa outra e proposital camada cromática -, com a certeza de que o apuro é inquestionável, o filme remete permitir que se tenha a certeza – desde lá do seu título – que todo um momento absolutamente pessoal passará a ser a vez maior dos registros do diretor – que já se retratava e às suas coisas em trabalhos anteriores.
Homem Comum permite a Carlos Nader mostrar-se como sempre e como nunca.
É possível imaginar alguém que não faz parte de um núcleo mais constante – ou sanguíneo, ou de opção por “proximidades” necessárias – impondo-se com a mesma importância afetiva, a ponto de passar a alvo das lentes e atenção de um diretor de cinema por cerca de 20 anos? Sim, é a resposta mais facilmente perceptível na opção de Carlos Nader ao “adotar” um caminhoneiro, “gente das mais comuns”, fazendo-o de tamanha monta entre seus caminhos de vida que não se envergonhou de modo algum em entregar-se de voz e alma nesse seu mais recente e espetacular documentário. Entregar-se a um trabalho que se desnuda de modo incisivo como algo que jamais poderia representar ou ser construído sobre alguém de um mínimo reconhecimento mais amplo: é disso que se trata.
E bem na contramão do que sugeriria a regra comum dos últimos anos – mesmo trafegando na mesma via da emoção de matiz intimista -, Carlos espanta a todos com o outro entre os dois trabalhos superiores que estrearam nessa edição do É Tudo Verdade, porque retoma a inventividade máxima na elaboração, firmando a certeza de que tudo melhora quando é bem tratado nas estruturas. De maneira um tanto diversa da de Carlos Adriano, neste longa-metragem o diretor se coloca em voz de maneira constante e imprescindível: ficaria mais fácil ainda compreender o filme como situação a ser apresentada para poucos conhecidos, tamanha a exposição que ele não nega. E está justamente nos questionamentos de Nader a razão embrionária do projeto iniciado há quase duas décadas, com intenções e questões bastante atreladas a um instante da vida em que tendemos a não crer na sabedoria comum, nos atos comuns, sempre buscando nas complexidades temáticas e nas questões profundas sentidos para a vida e afins. Motivado por situações evocadas e precipitadas por e em Ordet, de Carl Dreyer, saiu às ruas (mais especificamente indo a postos de paradas de caminhoneiros) para tentar arrancar deles, resumidamente, algo sobre o que seria o sentido vida (“vida tão estranha”, intromete ele nas questões): buscou respostas a questões de enorme potência filosófico religiosas e encontrou Nilsão, que seria a pessoa a ser observada vez por outra nesse espaço de tempo subsequente.
O documentário é rico demais ao permitir por todo o tempo que a voz de Nader continue questionando a Nilsão, enquanto esse por todo o tempo insiste na sua compreensão mundana das coisas: espertamente, por exemplo, Carlos Nader corta tais sequências com um sutil grunhido seu demonstrando que entrega os pontos mais uma vez diante das respostas diretas e simples do caminhoneiro. Tal processo de corte potencializa o tom de intimidade entre os dois – que não é superficial ou artificial, bom que se diga -, ganhando importância na relação de trocas do filme, e justamente por ser processo de execução técnica na edição. Mas essa é só uma das riquezas técnico-estéticas do trabalho que, como citado antes, poderia ser definido como um tríptico (bom lembrar que, originalmente, “tríptico” remete a imagens: e bom reforçar que o cinema também), que abriga esse quinhão de processos “reais” e os de desnudamento das intimidades e dos afetos; utilizando numa segunda instância a ficcionalização, através de um filme criado pelo próprio diretor, falado em inglês e com personagens que antagonizam de alguma maneira os do filme de Dreyer, mantendo a questão da morte e do inconformismo diante dela (daí a questionar sobre o sentido da vida, um nada) como o impulso principal; e, no terceiro modo de sustentação, com a inserção de longos trechos do filme dinamarquês de 1955 servindo tanto como o grande reforço do que angustiou o diretor e propiciou sua ida à busca lá atrás, como uma espécie de campo de transição entre as outras duas práticas de construção, impedindo o que poderiam ser solavancos nas passagens de um momento ao outro, e estabelecendo o trabalho como algo de forte pendor híbrido.
O todo consegue fortíssimo modo de capturar e entregar, se impondo nas sensações do espectador: Nader por alguns instantes nesse longo período abandonou evidentemente o trabalho ao deus dará, mas instado pela forte relação estabelecido com o caminhoneiro o retomou por diversas vezes – situações, algumas inacreditáveis de tão tristes e da vida, e outras com cumplicidade suficiente para permitir algumas brincadeiras.
Portanto…
Portanto, de cara, numa primeira camada, os filmes de Adriano e de Nader se identificam na deslavada ostentação de afetos muitos particulares a cada um: e nessa chave se fazem parceiros ao modismo surgido nos tempos das câmeras ligeiras/leves. Ambos não negam em nenhum instante que o que os motivou à conclusão das empreitadas tinha no viés dos sentimentos o motivador maior. E mesmo assim, o que se constata é que são trabalhos de fortíssima atenção e cuidado nas questões estéticas, que não conseguiriam respiração fluida se não fossem fruto de muito afinco e dedicação à técnica (filmes, numa segunda camada de compreensão rasa, obtidos do processo de montagem: essencialmente, mas não só). Por diversos outros vernizes, entre emoções brotadas na tela e o cuidado no modo de fazê-las mais potentes (sempre com a mesma ternura que os trabalhos intimistas do modismo demonstraram nas ligações entre os autores e os alvos), nota-se que é possível sim atentar aos tempos, às necessidades de cada geração em elevar seus assuntos e seu modo de compreender o mundo, tanto quanto nota-se (e louve-se demais isso) que abdicar da qualidade pode ser aceito até um certo momento: momento em que Adriano e Nader talvez tenham elevado a qualidade a tal ponto que as exigências, a partir de agora, se farão mais exigentes e finas.