19o É Tudo Verdade: O precioso saber de quando falar e se calar

Por Orlando Margarido (Carta Capital)

Diante de uma produção nacional incrementada e variada, é natural que os documentários comecem a esboçar alguns princípios e tendências em comum. O tempo também demonstra um processo de maturidade entre os realizadores mais experientes, que em muitos casos, exceções de regra, parece ser influente aos recém-chegados. No encontro entre essas duas forças se equilibrou a boa seleção da mostra competitiva do 19º É Tudo Verdade, com picos de qualidade mesmo surpreendente. Entre os sete filmes avaliados pelo Júri Abraccine chama a atenção o comportamento dos realizadores ante seu objeto de estudo, ou personagem ou contexto como se queira, algumas vezes tornado processo e tema maior do filme.

Exemplo mais significativo é justamente Homem Comum, de Carlos Nader, premiado pelos jurados. O diretor, da geração que tem carreira, se insere ele mesmo na tela, na maior parte do tempo pela voz, para debater suas dúvidas e aflições com o caminhoneiro Nilson. Assume, assim, a postura, mas também a impostura do filme, expondo de modo claro a relação que o une ao personagem. Nader não faz uso do dispositivo com a impertinência do realizador que quer se sobrepor ao foco eleito. Sabe usar o procedimento para o benefício de enriquecer o filme. Mas também com a sinceridade de querer apenas partilhar suas impressões com quem já considera um amigo, e não mais apenas um interlocutor de trabalho, quebrando outra barreira recorrente do gênero documental.

Em síntese, Nader sabe falar e sabe silenciar quando a situação fala por ele. Parece uma atitude razoável, natural ao partido documental, mas nem sempre é o que se vê nas produções mais recentes. Cada vez mais democráticos, os meios de realização do documentário não garantem necessariamente um conhecimento de todas as circunstâncias envolvidas neste jogo arriscado de tentar contemplar a verdade, ou ao menos um bom pedaço dela, em especial quando se trata de material humano.

Por talvez perceber isso, alguns dos realizadores em questão preferiram transferir a voz a quem melhor pode se representar, o próprio contemplado. Ou se tanto, aqueles que o circundam com testemunhos relevantes. É assim com Dominguinhos, o mais radical no recurso da primeira pessoa, em que o trio Joaquim Castro, Eduardo Nazarian e Mariana Aydar dá a palavra ao músico, reconhecendo neste o genuíno, a informalidade enriquecedora. A eles cabe a costura de um contexto, de uma memória, a partir de aprofundada pesquisa de arquivo.

A contextualização, aliás, é mérito de muitos dos títulos. Muitas vezes não se fala apenas do tema ou personagem estudado mas do entorno histórico em que estão inseridos. Exemplo notável da opção é Democracia em Preto e Branco, de Pedro Asbeg, que vai além do movimento político corinthiano dos anos 80 e se abre numa ampla análise da conjuntura social durante a ditadura militar. Mais uma vez, a palavra cabe aos líderes da iniciativa, eminentemente a Sócrates, em longo depoimento elucidativo. Saber respeitar a fonte principal da memória, mas não se contentar apenas com ela, é atitude sábia também de Triunfo, que a muitos surpreende com a rica cena brasileira, em particular paulista, do hip hop a partir de um de seus precursores, Nelson Triunfo. Chega mesmo a se distanciar um tanto do protagonista, mas com justas causas como recordar a ebulição dos bailes negros soul em meio a mesma repressão ditatorial.

Casual ou não, tais leituras vieram a calhar para a lembrança dos 50 anos do golpe que instituiu o regime militar. O fato, como se sabe, pode ser usado ao bel prazer de quem o analisa e nem sempre com o devido distanciamento. Esta falta é apenas uma entre as que tornam Bernardes um registro na contramão da tendência mais vigorosa e reflexiva do documentário atual, ao preferir uma aproximação meritória do personagem, o arquiteto modernista carioca Sergio Bernardes. Vale se estender um pouco mais neste caso de contraponto aos demais selecionados.

A começar pela decisão dos diretores Gustavo Gama e Paulo Barros de convocar um neto, numa variação das vozes já mencionadas, como anfitrião a trajetória do personagem, morto em 2002. Trata-se de uma carreira que, bem manejada em seus contornos, falaria por si com inegável interesse, em seus prodígios e conflitos. A presença de uma terceira voz, no entanto, nem sempre funciona como interlocutora e transmite uma idéia de falseamento. O resultado é um retrato mais interessado em cortejar do que discutir, e a revelação quando se dá ocorre na maior parte das vezes por informações pontuais e fatos sugeridos mas pouco aprofundados, a relação com os militares como um deles. Curiosa, contudo, a supressão de um entre os três filhos do protagonista, justamente aquele que carregou o nome paterno e fez do cinema seu ofício, inclusive com um feito de matéria documental chamado Tamboro, de triste ineditismo em nossos cinemas.

Proposta inovadora, e de quebra de imediata empatia com o espectador, nos traz Jorge Furtado com O Mercado de Notícias. Para um tema de rara análise e nem sempre palatável como é a mídia, o diretor se aproveitou de leitura pessoal aparentada para inserir a montagem de uma peça teatral de época em meio aos depoimentos atuais, cotejando assim passado e presente. O recurso ameniza o efeito da tradicional, e muitas vezes aborrecida, utilização das “cabeças falantes”, ou seja, as longas declarações de entrevistados. E fornece agilidade e substrato ao tema, ampliando o que poderia ser considerado restrito. É uma configuração esta do cinema documental difícil de dosar, entre o interesse do realizador e aquele da platéia, que nem sempre alcança o melhor índice. Um exemplo que se mostra menos empolgante nesse aspecto, Por um Punhado de Dólares — Os Novos Emigrados procura na boa pesquisa dos personagens compensar certo didatismo e o formato mais convencional, em que o diretor Leonardo Dourado não escapa da tentação de se fazer reiterativo ao que já se percebe nas situações.

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