Cássio Starling Carlos *
A visão em conjunto dos nove curtas-metragens da competição brasileira do É Tudo Verdade reitera a percepção, já registrada a respeito dos longas, de que a maior parte dos trabalhos selecionados tende a buscar moldes testados e garantidos. Resta descobrir se esta é uma perspectiva gerada pelos valores priorizados na seleção ou se o conjunto exibido pode ser lido como reflexo de um momento da produção. Fato é que a evocação de tendências, modos e influências se sobrepôs aos próprios filmes e fez sumir do horizonte a possibilidade de invenção formal que o curta, supõe-se, está mais apto a pôr em prática.
Embora em baixa intensidade, a liberdade não esteve ausente da seleção, como demonstrou a forma madura da colagem de “Festejo Muito Pessoal” e o exercício ainda abstrato de “Manual”. Enquanto o trabalho de Carlos Adriano, escolhido como melhor curta pelo júri da Abraccine, prolonga o gesto consistente do diretor de lançar um olhar autoral a materiais de arquivo e, assim, provocar ressignificações, a proposta ensaística de Letícia Simões apenas sobrepõe signos, sem conseguir escapar da gaiola do subjetivismo.
Críticas à mania contemporânea pela imagem, o lado abismo do espelho, vieram à tona em “Improviso Ambulante” e “Cópia Própria”. Ambos adotam recursos mais tradicionais do documentário de observação, mas permanecem encantados pelo próprio dispositivo, gerando menos reflexões à medida que preferem permanecer autocontemplativos.
“Benção” e “Candeias” procuram aproximar-se da religiosidade popular, distinguindo-se, porém, da tradição etnográfica que determina muitas abordagens da questão. O primeiro registra o cotidiano de uma benzedeira, seu gestual peculiar marcado pela idade avançada e pelo misticismo, a tradição traduzida na oralidade das rezas. As particularidades da situação, contudo, ficam apagadas por um excesso de devoção (ou de recato) dos realizadores diante da personagem. O segundo esboça uma abordagem mais sensorial da romaria a Juazeiro do Norte, tenta captar a experiência religiosa da perspectiva coletiva. O resultado fica nos limites do exercício bem feito.
A crença no depoimento, seja a memória familiar, seja a denúncia, determina o alcance de “A Lembrança que Eu Gosto de Ter” e “Se Você Contar”. O primeiro parte de evocações para reconstituir a experiência de uma família sertaneja, a casa, a terra, a vida agreste. O ponto de partida na própria intimidade, as vozes de pais e tios que tecem o fio narrativo, ameaça limitar o filme ao álbum de família, tendência vista e revista ao longo do festival. A escolha de filmar os lugares – a origem – agora alterados pela passagem do tempo e a sobreposição sem redundância de vozes e imagens permite que o curta alce voo poético.
Menos feliz é o resultado de “Se Você Contar”, que se inspira no modelo de entrevistas de Eduardo Coutinho para tratar o grave tema do abuso sexual na infância. Em vez de manter a unidade do discurso e assim encontrar suas inflexões e oscilações, Roberta Fernandes prefere picotar as entrevistas em tópicos, saltando de um personagem a outro. Embora o objetivo seja nobre, o curta não se distingue na multidão dos filmes de denúncia.
* Cássio Starling Carlos é crítico, curador, pesquisador e professor de história do audiovisual; Presidente do júri Abraccine no 22º É Tudo Verdade.
** Foto do filme “Festejo Muito Especial” – Carlos Adriano.