Pedro Plaza Pinto*
Vencedor do prêmio Mirada Paranaense do 6° Olhar de Cinema, Festival Internacional de Curitiba
“– Que tempos!”, desabafa delicadamente o fotógrafo, um dos personagens de A Rua muda (Eduardo Colgan, 2017). A cena precede o final do curta e o comentário é sucedido de nova saída do grupo de amigos que, com uma última cerveja, invadem novamente a rua noturna para mais um momento de celebração da amizade, sobretudo insistência em estar na rua ainda que sob ameaça de violência policial. É o final do filme e o grupo foi perscrutado afetuosamente pela câmera quase sempre muito próxima, em busca dos belos e marcantes rostos. A proximidade acentuou as reações quando os protagonistas se lembraram do instante quando, em uma rotineira balada, um tiro foi disparado.
O que aconteceu? Por que a polícia disparou um tiro contra aquele rapaz? Nada disso entra no exame pois o interesse da narração é orbitar as reações deslocadas de cada um e cada uma entre os quatro amigos. A perplexidade e a falta de sentido jogam com as fisionomias.
Este estudo meticuloso se inicia com a câmera lenta que deflagra o acontecimento gerador para o grupo, quando o fotógrafo também consegue um registro antes da corrida de evasão com o tiro na noite. Em outra cena adiante, percebemos a reação de todos ao verem a foto do acontecimento. As transformações das faces dá a dimensão de sentimentos contrários: os quatro compartiam outras fotos geradoras de leves reações afetuosas e testemunhas da duradoura amizade do grupo, mas, entre elas, emerge “a foto”. Contracampo: o filme não nos mostra a foto, está interessado nos semblantes do grupo.
A Rua muda destila, portanto, uma reflexão sobre o mundo de hoje, sobre o Brasil de agora. O flagrante da operação policial feito por outra máquina celular-câmera traz posteriormente a cena que o dispositivo pode capturar de repente. Desta vez nós compartimos o exame da tela do computador que mostra o vídeo. Trata-se de uma cena que hoje nos parece comum e já marcada por alguns códigos: cidadãos revoltados com a truculência policial, ameaça de prisão dos jovens que reclamam de abuso de autoridade, ameaça ao cinegrafista que registra a cena.
O papel da difusão de sons e imagens em teia dá a base material para o pensamento sobre posar e flagrar, postar e publicar, ver e rever, examinar e reexaminar o prolongamento e repercussão dos instantes em momentos dispersos. A conexão entre a violência policial e o golpe legislativo de 2016 dá origem o atual estado de coisas, como explicita ao final a instigante produção de sentidos da música Hashtag.
A potência estética e política de A Rua muda reside justamente no estudo das cenas e dos rostos – curiosamente, expressando o atual hiato de entendimento entre gerações, a personagem da mãe não é vista no mesmo registro e a sua presença ganha mais espaço fora-de-campo.
De início, o filme produz o encantamento de olhar o movimento lento do grupo na rua, segundos antes do evento traumático. Há a curiosidade do olhar e pelo olhar, e os espectadores têm a liberdade de ver quem quer ver, de prescrutar os corpos na tela, seus rostos, seus lentos movimentos. Mas algo está para acontecer e prestes a tomar a cena. Uma moça passa em fuga. Ação e reações: o ruído do tiro é obliterado pela música que cria a suspensão e dá um tom grave ao momento.
Quem entre nós pode dizer que esteve desincumbido de lidar com o trauma de um projétil deflagrado, do ruído, do fogo seco, do estampido que dilacera a calma sob pedestal típica do silêncio relativo no ruído branco da cidade? A cena primal é feita, portanto, de co-presença e de co-pertencimento no encontro lúdico e celebrativo, presença à imagem no segundo da imagem, ou seja, da impressão antes da reação ao tiro, mas também da reação diluída ao longo do tempo do filme.
Todavia, depois e antes do impulso à corrida, a teia afetiva que anima o grupo é a da convivência e da amizade, afinal, aí sim, o tema do filme. Trata-se, então, da amizade que sustenta a difícil lida com um evento traumático que marca e atravessa o cotidiano destas moças e destes rapazes. Atravessamento movido pela potência difusora das redes e das imagens e sons diferenciais, quais sejam, das imagens e sons formados num repertório que aponta para um jardim possível e experienciável dos acoplamentos com dispositivos sonoros e brilhantes.
A rua segue reivindicada por esta geração, ainda que diante da incompreensão dos mais velhos, diante da violência da polícia, diante do golpe de estado. Permanece a tentativa de diálogo no espaço íntimo e sincero entre amigos, mesmo em contexto assombroso. Logo, é possível enunciar uma síntese discreta do filme: diante do espanto ou da perplexidade, a aposta na sociabilidade de afetos trocados das mais variadas maneiras, em momentos dispersos mas reunidos pelas experiências comuns. Contra o espanto sem expressão, vale a celebração da amizade e da desalienação no mundo de hoje. #ForaTemer #aBundatreme #Vemprarua #Prepara #Tomaarua #Mostraacara
* Pedro Plaza Pinto é pesquisador de cinema brasileiro e professor na Universidade Federal do Paraná. Foi membro do júri Abraccine no 6º Olhar de Cinema.