O enigma sírio

Adriano Garrett *

300 milhas (300 Miles) - still2 - Competitiva Longa 2017

A programação de mais de 120 filmes oferecida pelo 6º Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba – trouxe ricas possibilidades de diálogo entre as obras exibidas. Um cotejo interessante pode ser realizado tomando como ponto de partida dois longas-metragens relacionados à temática da Guerra Civil Síria: de um lado, o brasileiro A Casa de Lucia (direção: João Marcelo e Lucia Luz), que figurou na mostra Outros Olhares; de outro, o sírio 300 Milhas (direção: Orwa Al Mokdad), presente na mostra Competitiva.

Alepo, antes considerada a maior cidade da Síria e hoje tida como um dos principais símbolos da destruição provocada pelo conflito, surge como um elo entre os dois trabalhos. É de lá que o diretor Orwa Al Mokdad filma a resistência armada ao governo Bashar al-Assad e estabelece um diálogo audiovisual com a sobrinha, que registra seu cotidiano no outro extremo do país. No caso do filme brasileiro, foi dessa mesma cidade que Lucia Luz teve que fugir após a eclosão do conflito, iniciando uma trajetória que resultou na vinda como refugiada para Curitiba.

Em uma das cenas iniciais de 300 Milhas, um combatente da oposição ao regime de Assad dá um depoimento em que imagina como seria sua vida caso não houvesse guerra: “Hoje eu estaria no terceiro ano da faculdade de Filosofia”, ele diz. Tal conjectura recebe seu devido contraplano quando sabemos, pelo documentário brasileiro, que Lucia abandonou a faculdade de Arquitetura depois de deixar a Síria, mas que, no Brasil, se tornou a primeira estudante refugiada a conseguir transferência para uma universidade brasileira (no caso, a UFPR).

Essa informação é dada ao espectador de A Casa de Lucia apenas em seus letreiros finais, o que demonstra que o filme não tem a pretensão inicial de apontar sua personagem como um caso de exceção entre os refugiados. De modo contrário, não sabemos exatamente o motivo de estarmos acompanhando Lucia nos primeiros momentos do filme. Só depois de algum tempo de projeção é que entendemos seu lugar como refugiada na capital paranaense e compreendemos que a viagem que ela faz para o Kuwait marca um reencontro com seus familiares após dois anos sem vê-los.

Nota-se por parte do diretor João Marcelo uma intenção de ir de encontro ao senso comum associado à figura dos refugiados. A questão financeira não surge como uma preocupação, já que os familiares de Lucia no Kuwait aparentam ótimas condições de vida. As discussões pretendidas a respeito da expatriação forçada se calcam, então, no terreno da imaterialidade.

A Casa de Lucia (Lucia's Home) - still2 - Outros Olhares 2017.pngA intenção inicial era que o diretor brasileiro também viajasse ao país asiático para realizar filmagens, mas, como o visto kuwaitiano não lhe foi concedido, um plano B foi acionado. A maior parte do filme é composta por imagens caseiras captadas por Lucia durante encontros com familiares ou em conversas mais reflexivas com João Marcelo via Skype. Esta restrição na produção também dita que, na volta a Curitiba, várias das imagens que vemos são mostradas pela personagem e por seu marido da tela de um notebook, o que reitera a noção de coautoria do trabalho.

A opção da montagem por seguir o material captado de modo quase sempre linear acaba por enfraquecer principalmente a parte inicial, pois a maior riqueza do filme é o tensionamento causado pela junção entre a banalidade das situações filmadas e um extracampo que surge através de informações intermitentes (as dificuldades de ser cristão no Kuwait, a repressão a liberdades individuais, a vida em Alepo antes da fuga).

Uma questão transversal que salta aos olhos é a padronização universal de desejos (caso dos iPads) e ambientes (quase não há cenas externas no Kuwait, e os shoppings ou o antigo escritório de Lucia são muito similares ao que se vê no Brasil). Pensando nisso, é simbólico que o momento mais representativo do filme – intensificado por uma quebra de linearidade da montagem – se dê em um ambiente como esse: em um shopping center, Lucia filma uma espécie de flash mob em que crianças dançam e representam enquanto um apresentador pede por doações ao povo sírio. Em meio àquele ambiente consumista, o olhar e o apoio à causa síria se torna mais um produto, cuja finalidade maior não é a conscientização, mas sim a satisfação efêmera de uma boa consciência burguesa.

É certo que a campanha à la Criança Esperança no shopping kuwaitiano não traduz uma visão aprofundada sobre a situação síria. Mas, afinal, como representar as múltiplas dimensões de uma das maiores tragédias humanitárias deste século enquanto ela ainda está em pleno curso? É isso que alguns filmes realizados no calor do momento vêm tentando responder, como é o caso de 300 Milhas.

Assim como em A Casa de Lucia, o filme sírio também apresenta correspondências audiovisuais entre duas pessoas distantes. A diferença é que nele o contato presencial entre o diretor Orwa al Mokdad e a sua sobrinha Nour é realmente inviável. O cineasta utiliza a sua história familiar para apontar como, historicamente, a guerra moldou a vida daquelas pessoas – a exemplo do caso da parente que fugiu do Iraque após a primeira Guerra do Golfo.

Este ponto de vista pessoal e o acréscimo de uma visão infantil sobre o conflito surgem como diferenciais do projeto, embora a montagem falhe em dar maior organicidade ao paralelo entre a relação dos parentes e as filmagens feitas em pleno front. Neste último caso, também há uma semelhança com o longa-metragem brasileiro graças ao amadorismo das imagens, embora, naturalmente, o teor instagramizável do primeiro não encontre espaço no segundo.

A montagem extremamente fragmentada produz uma ambivalência: se, por um lado, gera evidentes problemas de progressão narrativa e de reflexão sobre o contexto geral, por outro ela capta com vigor toda uma ambientação que passa muito mais pelos sentidos do que pelo intelecto. Nos melhores momentos do documentário, presentes nas reflexões que o diretor pede para que soldados façam diante da câmera, fica nítido que naquele contexto já foi perdido qualquer fiapo de racionalidade.

Em um momento em que, de poucos anos para cá, festivais de cinema vira e mexe exibem filmes relacionados à tragédia síria os apontando como os “trabalhos definitivos” sobre a questão, A Casa de Lucia e 300 Milhas fogem dessa pecha generalista e têm o mérito de adicionar novas camadas ao tema a partir de abordagens transversais.

*  Adriano Garrett é crítico e editor do Cine Festivais. Foi membro do júri Abraccine no 6º Olhar de Cinema.

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