Neusa Barbosa *
Em sua sexta edição, o Olhar de Cinema de Curitiba confirmou sua vocação de explorador de novas linguagens e filmografias mais raras nas salas de cinema comerciais. Sua competição de longas, com 11 filmes, também se enquadrou nesta filosofia, trazendo uma original mistura de documentários, ficções e híbridos.
Mesmo entre os documentários “puro sangue”, caso do sírio “300 Milhas”, de Orwa Al Mokdad, do argentino “Soldado”, de Manuel Abramovich, do indiano “Máquinas”, de Rahul Jain, e do norte-americano “El mar la mar”, de Joshua Bonnetta e J.P. Sniadecki – este, o grande vencedor do festival –, manifestou-se um especial apreço pela linguagem, ainda que as razões para isso não fossem exatamente as mesmas em cada caso.
É visível, em “300 milhas”, que o cineasta, filmando dentro da Síria conflagrada pela guerra civil e ouvindo distintos participantes do conflito (militares, rebeldes, pacifistas), sintonizou a urgência do que tinha à mão, dentro de possibilidades em constante mudança, perto do perigo. Repórter para a Al-Jazeera e a BBC, Mokdad demonstra o instinto do imediatismo da reportagem e consegue colocar os espectadores do lado de dentro da guerra, sentindo o perigo roçando a pele. Este é o grande mérito do filme, que peca, no entanto, pela falta de uma maior clareza nesta articulação entre as partes em conflito.
Sem dispensar a urgência como tema, já que trata dos riscos corridos pelos milhares de imigrantes mexicanos que atravessam clandestinamente a fronteira com os EUA, “El mar la mar” faz uma opção decidida por uma linguagem fora da tradicional. Evita, assim, expor os rostos da maioria de seus entrevistados, que são tanto mexicanos quanto norte-americanos que vivem isolados em regiões fronteiriças, usando, no entanto, suas vozes, eventualmente em tela escura, sem qualquer imagem. No resto do tempo, retrata seus percursos, em locais desérticos, arenosos, montanhosos, cobertos de vegetação espinhosa, batidos por ventos frios e uma total escuridão. Assim, evoca as condições dos trajetos de pessoas a pé, que se perdem nesta paisagem inóspita, deixando para trás sapatos, água, documentos, roupas, amigos, parentes, ou mesmo a própria vida. Neste sofisticado trabalho da fotografia, também a cargo dos diretores Bonnetta e Sniacecki, o filme instaura uma atmosfera de compartilhamento que escapa de uma primeira impressão fantasmagórica, mergulhando o espectador na pele de seus personagens por uma espécie de efeito hipnótico desta impactante sobreposição de vozes e imagens com efeitos nunca meramente estetizantes.
“Máquinas”, um marcante trabalho de conclusão de curso do cineasta indiano formado e radicado nos EUA Rahul Jain, é outro título que coloca em paralelo a mais crua exposição de condições de trabalho degradantes, dignas da era da Revolução Industrial, em tecelagens de Gujarat (Índia), e a beleza eventualmente captada nos tecidos que são o resultado dessas excruciantes jornadas. Beleza e exploração convivem lado a lado no retrato destes operários desvalidos, alguns dormindo, exaustos, sobre os fardos de tecido que acabaram de produzir. Alguns depoimentos pontuam a expressiva narrativa visual, esclarecendo e aproximando o espectador, que não tem como não se sentir tocado por tudo o que se vê aqui.
Já o argentino “Soldado” investe numa aposta vertical no despojamento da narrativa, inserindo, como se fosse parte de sua pele, a câmera junto a um jovem soldado. Assim, entra no cotidiano do recruta, tocador de tambor na banda militar, de uma forma que evidencia, sem alarde, a profunda burocratização e, não raro, a estupidez de uma série de rígidos rituais cotidianos. Um exemplo claro está na sequência em que um oficial ensina ao jovem as três formas de arrumar sua cama, dependendo do dia da semana e sendo passível de punição, caso a norma seja desrespeitada. Toda a ideia de autoritarismo está, a todo momento, sendo sutilmente posta em cheque, ao mesmo tempo que se expõe a ingenuidade e inexperiência do soldado diante do mundo que se apresenta diante dele, não só dentro do quartel.
Interferência e distanciamento
Os dois híbridos de documentário/ficção, o brasileiro “Fernando”, de Igor Angelkorte, Julia Arlani e Paula Vilela, e o italiano “Vangelo”, de Pippo Delbono, trabalharam sua fusão com ênfase totalmente distinta. “Fernando” retrata o perfil do ator e professor de teatro carioca Fernando Bohrer, reproduzindo o cotidiano de uma personalidade envolvente e carismática. Ao mesmo tempo em que se apropria de “cenas reais” – como as aulas do protagonista e suas palavras, sempre naturalmente poéticas -, o filme permite-se liberdades, como mostrar o bailarino Rubens Barbot (visto em “Esse Amor que nos Consome”, de Allan Ribeiro) interpretando seu parceiro de vida, o que ele não é (o real não pôde filmar). Essas pequenas ficcionalizações não comprometem a verdade de um personagem nitidamente fascinante e que, por esse motivo, arrebatou o público do festival a dar ao filme o seu prêmio.
Título mais problemático da competição de longas, “Vangelo” ressente-se do peso e da manipulação excessiva do diretor Pippo Delbono ao longo de uma narrativa que incorpora seus problemas de saúde, um de seus espetáculos teatrais e seu relacionamento com um grupo de refugiados chegados à Itália. Há muitos momentos de egotrip neste filme, que supostamente refletiria uma tentativa de dar voz a estes refugiados. Mas o que se vê, na maior parte do tempo, é o diretor impondo a eles suas regras, de uma maneira em que o desconforto destes personagens torna-se muito evidente. Um pouco mais de silêncio e vontade de ouvir essas pessoas sofridas da África e da Ásia permitiriam talvez chegar mais perto do mistério de cada uma.
Entre as cinco ficções da competição, pelo menos uma, a franco-tunisiana “Corpo Estrangeiro”, da diretora Raja Amari, parte da história de uma refugiada, Samia (Sarra Hannachi). Sua sequência inicial, mostrando refugiados na água, é de um impacto inegável. O início da trajetória de Samia em Paris, contando com a ajuda de um compatriota tunisiano (Salim Kechiouche), parece promissor para revelar a saga destes personagens deslocados, destacando dilemas específicos da mulher diante da rigidez de alguns ambientes muçulmanos. Mas, a partir da entrada na vida de Samia de uma imigrante árabe radicada na França (Hiam Abbass), que se torna sua patroa e protetora, o filme perde força com uma série de soluções mágicas, num roteiro que peca por querer tratar de questões demais num único relato, faltando-lhe densidade para aprofundar satisfatoriamente qualquer uma delas.
Dois adolescentes deslocados e fugitivos estão no centro do drama turco “Grande Grande Mundo”, de Reha Erdem. O filme, vencedor do prêmio Abraccine no festival, é particularmente eficiente ao articular uma atmosfera a um tempo realista e repleta de simbolismo surreal, partindo da fuga dos dois irmãos órfãos de uma situação opressora, particularmente para a menina. Refugiados numa floresta, os dois são envolvidos numa atmosfera que remete ao realismo mágico, encontrando nas plantas e animais correspondentes para as emoções e sonhos dos dois irmãos, buscando refúgio de um mundo externo francamente hostil. A fotografia de Florent Herry, aliada a um roteiro devidamente ritmado, são os dois pontos fortes do filme.
Outro indiano, “Newton”, de Amit V. Masurkar, foi aparentemente o título mais convencional da competição, contando a história de Newton (Rajkummar Rao), um funcionário público que leva aos últimos extremos sua obsessão para a realização de eleições num ponto remoto do país, assolado por uma guerrilha intermitente. Ainda que recorrendo sem inibições a inúmeros clichês do fértil polo de Bollywood – especialmente no retrato dos coadjuvantes ao redor de Newton e no interesse amoroso deste por uma professora local -, o filme termina entregando mais do que promete. Isto ocorre especialmente no que se refere ao tom crítico da história, que retrata um país confrontado pela imensa ignorância de uma parcela considerável da população rural, a bitolação ou indiferença da maioria de seus funcionários públicos e a mão de ferro de sua força militar.
Realidade e delírio
Os dois outros competidores ficcionais recorreram a alguma raiz documental, expressada de maneiras bastante diferentes. Fortemente elaborado do ponto de vista formal, contrapondo imagens 16mm e super-8, além de aplicar riscos e outros efeitos sobre as imagens, o chileno “Rey”, de Niles Atallah, parte de um personagem real, o advogado francês Orélie-Antoine de Tounens (1825-1878), para compor uma espécie de cinebiografia delirante de um personagem idem, interpretado por Rodrigo Lisboa. No centro do relato está a obsessão deste advogado francês para unificar um imaginário reino da Araucânia e da Patagônia, do qual ele teria se tornado rei, apesar de tratar-se de um território habitado por indígenas na América do Sul. E, mostrando seu julgamento, no Chile do século 19, que é uma fonte de informações sobre o inusitado personagem, “Rey” é tudo, menos um filme de tribunal, com seus cenários teatrais, repletos de personagens mascarados.
Representante brasileiro entre as ficções, “Navios de Terra”, longa de estreia da cineasta e artista visual Simone Cortezão, igualmente mostra empenho em sua elaboração de imagens e sons para seguir uma narrativa fluida em torno de um marinheiro (Rômulo Braga), ex-minerador, que segue diferentes trajetórias, no mar, e finalmente, na terra, na China. Seguindo o fluxo dos encontros deste personagem, incorpora-se alguns marinheiros reais, que interagem com o ator-protagonista, contando histórias vividas de perigo e morte. Diversas imagens perduram na memória, especialmente na primeira metade do filme, algumas remetendo às interferências humanas no seio da terra e ao desastre ecológico de Mariana – que, em um momento, é visto na tela da TV a bordo do navio.
* Neusa Barbosa é jornalista e crítica de cinema. Foi membro do júri Abraccine no 6º Olhar de Cinema.