Orlando Margarido *
O reverso da moeda capitalista, refletido pelo mal estar contemporâneo dos que não são assistidos, pautou boa parte da seleção do 6º Olhar de Cinema. Em especial no recorte competitivo, aquele avaliado pelo Júri Abraccine, mas também espraiado em outras seções. Essa reflexão se deu por propostas diversificadas, marca que ao lado da experimentação costuma ser a linha curatorial do evento. Por esse aspecto, o filme eleito pelo colegiado talvez tenha menos evidente o caráter de invenção. Mas é justamente por se sustentar num arriscado equilíbrio entre realismo e fantasia que o concorrente turco Grande Grande Mundo alcança uma originalidade. Daí superar no impacto causado demais concorrentes, alguns de franca inventividade formal, estética, como Rey e El Mar La Mar, vencedor pelo júri oficial.
Trato aqui de quatro títulos que mais buscaram a vertente de experimentação, ainda que em diferentes níveis, em contraposição a títulos ficcionais e documentários de formato convencional. Nesses últimos, para exemplificar, o concorrente sírio 300 Milhas subtrai sua força da emergência de depoimentos de combatentes in loco,enquanto Vangelo se volta a questão da imigração em massa à Itália. Já Newton e Corpo Estrangeiro tem lá seus atrativos como drama, na narrativa correta e algum sentido crítico quanto a situação social na Índia e cultural de imigrantes na França, respectivamente.
Evidente apenas a preocupação temática comum no conjunto de filmes, nem sempre similar quanto a uma maior elaboração no formato. No caso do filme turco, o diretor Reha Erdem não a estabelece de pronto. Sugere aos poucos elementos que afastam a trama do realismo. Nessa proposta dialoga com outro sensível colega turco, Semih Kaplanoglu (da trilogia Ovo, Leite e Mel), ao narrar a relação de dois jovens irmãos órfãos em fuga. O rapaz invade a casa da família adotiva da irmã para tirá-la dali e termina por matar o líder do clã que abusa da menina. Depois desse breve e rápido prólogo, os garotos se refugiam numa floresta próximo ao vilarejo. É o cenário para uma tentativa de cotidiano idílico, apartado da sociedade e de suas regras sociais e injustiças, logo relativizado pela necessidade de trabalho e a intromissão de personagens igualmente a deriva. Mas também é ambiente para se estruturar uma relação ambígua entre os irmãos, sugestiva de incesto, não fosse uma dúvida instalada no início do filme.
A elaboração da narrativa está em nos dar sinais da complexa situação dos irmãos de modo simbólico. As cólicas da garota, os animais que os circundam e parecem proteger antes do que ameaçar, as alucinações em relação aos pais verdadeiros. Em oposição ao universo dito selvagem, e em muito no caso alojado na esfera da fantasia, será a realidade rude dos homens a mais uma vez conjuminar contra a união dos jovens. Se não tira o pé de todo do chão firme, o drama ousa dialogar com uma percepção dos sentidos do espectador, o que alguns de seus concorrentes fogem, adotam com mais parcimônia ou aprofundam.
Nesta última proposta está El Mar La Mar, dos norte-americanos Joshua Bonetta e J.P. Sniadecki, híbrido de documentário e ensaio visual. O mar em questão surge como figura de representação do deserto de Sonora, na fronteira dos Estados Unidos e México, por onde atravessam, como se sabe, imigrantes mexicanos em busca da entrada em terras americanas. A câmera se fixa nesse cenário árido, e em certa medida fascinante, para captar vestígios da passagem dos viajantes ilegais, levados pelos chamados coiotes. Nunca os vemos, apenas seus rastros.
Em vez disso, ouve-se em off depoimentos com testemunhos de quem de modos diversos entrou em contato com a gente em busca de vida melhor. Há quem ajudou, deu água e abrigo, outros que presenciaram tragédias, outros ainda que perdidos na imensidão vivenciaram delírios e perderam a razão. Enfim, trata se de retirar daquela viagem árdua já bastante conhecida e explorada pelo cinema um viés sensorial, no qual se contorna o impacto mais óbvio com o espectador, no confronto do olhar com a dureza da travessia e angústia dos personagens, e se oferece aguçar outros sentidos e estímulos. Alcança muito bem seu objetivo, e isso tem um custo de paciência e reflexão que nem sempre as platéias estão dispostas a pagar.
É em boa medida o conceito também adotado pelo estreante indiano Rahul Jain em Máquinas. Jovem estudante na Califórnia, ele utilizou um ambiente que lhe é bastante familiar. Ainda na Índia, cresceu em meio a fábrica de tecidos da família, indústria de força no país. Escolheu a dura labuta dos operários nas diversas etapas da fabricação como partido imagético, deixando que a câmera captasse os movimentos repetitivos tanto do maquinário como dos trabalhadores. Todos homens pobres, com idade variada, inclusive crianças, que atuam em períodos do ano, muitas vezes vindos de longe.
Preferiu, contudo, ir além das imagens e abrir para depoimentos, o que em parte pode ser questionado como recurso. Se traz revelações significativas, por outro lado soa um tanto reiterativo do que se vê do destino miserável daqueles homens. De todo modo, um belo primeiro filme, que traz pontos de contato com o pouco reconhecido documentário do também fotógrafo Adrian Cooper, Chapeleiros. Neste sim, o realizar de origem inglesa aqui radicado deixou fruir as imagens, com carga poética mesmo superior ao seu colega indiano, de uma das últimas linhas de fabricação de chapéus nos anos 80.
Se no bloco desses três longas-metragens, a radiografia da gente desvalida pelo outro lado da moeda atenta mais a atualidade, a visão de Rey propõe retomar o passado para nos fazer pensar sobre um mal ainda atuante no presente. A questão indígena, na opressão pelo colonizador e mesmo genocídio, é mote no trabalho talvez mais radical da seleção, quanto a linguagem e aos recursos estéticos. Uma temática cara ao cinema do Chile, com recorrência se atentamos a produção atual, em realizadores veteranos como Patrício Guzmán (O Botão de Pérola) e outros mais jovens. Como Guzmán, radicado na França, o jovem diretor Niles Atallah tem origem chilena mas nasceu na Califórnia e este distanciamento geográfico parece conceder olhar mais crítico aos acontecimentos na nação andina.
Apenas que Atallah prefere adotar caminho bastante metafórico, repleto de simbolismos e efeitos visuais para retomar a trajetória peculiar de Orélie-Antoine de Tounens, explorador francês que no século XIX se auto-proclamou rei das regiões de Araucanía e Patagônia. Pensava ali formar um estado independente com o apoio dos índios Mapuche e se contrapor ao governo chileno. Suas ideias, a investigação pelas autoridades e a suposta condição de insanidade do aventureiro são reestabelecidas de forma ficcional costurada a imagens de arquivo, recursos visuais e sonoros, elementos de cunho fantástico como máscaras. Em boa parte justificada pela história excêntrica e personalidade delirante do protagonista, a adoção desse formato tem saldo excessivo e desnorteia a proposta inicial de revisão crítica. Por certo é filme singular e confere corajosa visão a tema complexo, estímulo bem vindo numa mostra que pretende instigar a reflexão.
* Orlando Margarido é jornalista e crítico cinematográfico. Foi presidente do júri Abraccine no 6º Olhar de Cinema de Curitiba.