“Simonal” e o cinéma de qualité biográfico brasileiro.

simonal

Foto: Ana Rodrigues/Daniel Chiacos/Divulgação

Bruno Ghetti*

Wilson Simonal ainda é um assunto mal resolvido na cultura brasileira. O cantor, que nos anos 1960 subiu rápido na carreira e se tornou um superstar negro, mas que caiu no ostracismo de forma ainda mais meteórica na década seguinte, já ganhou um bom documentário em 2009: “Simonal: Ninguém Sabe o Duro que Dei”, dirigido por Cláudio Manoel, Micael Langer e Calvito Leal. Mas sua vida teve “drama” demais para ficar restrita ao registro documental; cedo ou tarde, algum filme de ficção surgiria.

Coube a Leonardo Domingues o desafio de ser o primeiro a narrar a vida do músico em um longa ficcional. Sim, “desafio”, porque ainda é preciso pisar em ovos ao lidar com um personagem tão controverso. O documentário de 2009 deu um passo adiante no sentido de resgatar o valor cultural (no campo artístico e no simbólico) do cantor carioca, com intenção clara de reabilitar a imagem do músico, mas sem com isso negar ou apagar seus erros. E o longa de Domingues, “Simonal”, procura seguir essa mesma trilha: tenta em certa medida redimir o cantor, fazendo justiça a sua real importância no nosso cenário musical, mas sem esconder que ele mesmo cavou grande parte da própria sepultura artística.

Convém, aqui, relembrar alguns fatos: no auge da truculência da Ditadura (início dos anos 1970), Simonal era o mais popular astro negro da nossa música. Mas enquanto artistas mais engajados tentavam driblar a censura e transmitir seu protesto contra os militares, o cantor se mantinha no gosto popular por músicas sobretudo alegres, algo alienantes, por vezes até patrióticas, que serviam à perfeição aos interesses propagandistas do governo. Ganhou fama entre os intelectuais de “apoiador da Ditadura”.

A situação ficaria pior quando, certo dia, o perdulário Simonal cismou que seu contador o estava desfalcando e pediu a um amigo, agente do DOPS, que lhe desse um “susto”, na intenção de que o funcionário confessasse o roubo. Resultado: o sujeito sofreu torturas, a história se tornou pública e o músico ganhou, então, a pecha não só de figura aliada aos militares como também de informante do regime. Foi banido da TV, das rádios e das grandes casas noturnas; sua carreira morreu.

O longa de Domingues começa mostrando uma das várias tentativas de renascimento artístico de Simonal, em 1975. Depois, um longo flash back apresenta seu início, como vocal de uma banda pequena, até que seu carisma, sua ginga e seu vozeirão o tornassem um ídolo musical. Apolítico e um tanto infantil, Simonal não estava preparado para o sucesso – ao menos não naqueles tempos, que exigiam um mínimo de engajamento. Era um rapaz pobre e negro que se orgulhava de, em um país racista e desigual, ter enriquecido e virado um ídolo de todas as classes sociais. De certo modo, foi vítima do deslumbre que teve com o próprio sucesso.

O ápice do longa é mesmo o episódio do contador – e toda a decadência (que incluiria um alcoolismo) posterior. A tese do filme é a de que Simonal, a despeito de sua irresponsabilidade, foi por fim uma grande vítima do racismo: os brasileiros, no fundo, não aceitaram um negro tão bem-sucedido e o puniram sem piedade na primeira chance que tiveram.

É bem provável que o cantor tivesse tido outras chances de se reerguer profissionalmente se fosse branco, mas colocar toda a culpa de um caso tão cheio de peculiaridades como o de Simonal apenas na conta do racismo é no mínimo discutível (Jorge Ben também cantou várias loas ao Brasil e foi associado à Ditadura, mas sua carreira continua viva ainda hoje). Mas o mais estranho é que o filme opte por trazer à tona o tema da discriminação racial apenas a partir da metade – até então, não ficamos sabendo de um episódio marcante sequer de racismo na vida de Simonal. Dramaticamente, a opção não se justifica. Sim, é até possível deduzir que a discriminação que sofreu ao longo da vida contribuiu para sua postura algo arrogante depois de bem-sucedido, mas o filme não traz na primeira parte substrato o suficiente para essa ilação (tal hipótese também culpabilizaria o racismo, no fim das contas, por sua derrocada, mas por caminhos mais sofisticados).

De qualquer maneira, o longa, embora exalte o cantor, ao menos não o coloca em um pedestal fantasioso, evidenciando seus erros e sua própria soberba ao lidar com certas situações. Ao que parece, Simonal era de fato um grande ingênuo, que não soube medir as consequências dos próprios atos. Pagou caro por isso.

Domingues assinou como codiretor o documentário “A Pessoa É para o que Nasce” (2003, de Roberto Berliner). Em sua estreia solo, mostra fluidez narrativa, embora seja lastimável a opção do longa pelo excessivo didatismo e a cansada estrutura em episódios anedóticos, cacoetes que fazem todas as biopics nacionais de músicos famosos parecerem o mesmo filme; mudam apenas o protagonista. Assim, “Simonal”, em seu alinhamento a um certo cinéma de qualité biográfico brasileiro, perde a chance de se deter mais sobre o personagem e transmitir ao público sua verdadeira essência, para além das questões da ingenuidade e do racismo.

“Elis: o Filme” (2016, de Hugo Prata) simplificava atrozmente aspectos da vida da biografada em nome de manter trechos curiosos, “filmáveis”, de sua trajetória. Mas ali, ao menos, tinha-se Andreia Horta, em uma atuação visceral, que passava a noção de quem era Elis Regina ao público nos instantes em que o roteiro não conseguia fazer isso. Fabrício Boliveira é um ator excelente e, tirando o sotaque (baiano, quando deveria ser carioca), não há a rigor nada de errado com sua atuação em termos técnicos. Mas falta a ele uma certa malemolência, a “pilantragem” do Simonal original; é muito bom nas cenas dramáticas, mas nas de palco deixa a dever ao biografado. Compõe um músico carismático e talentoso, mas sem o espírito do verdadeiro Wilson Simonal (o que, de certa forma, é antes culpa do roteiro que do ator).

Isis Valverde, no papel de sua esposa sofrida, também não tem uma personagem com um bom desenvolvimento, mas ela acerta no tom, evitando a armadilha de uma overacting; tem boas cenas ao lado de Boliveira. Vale destacar, também, a reconstituição de época, que embora seja “limpa” demais (as roupas não têm um vinco, e as paredes, sequer uma mancha), dão uma atmosfera lírica, saudosa, de como devem ter sido os anos 60 e 70.

No mais, Domingues sabe controlar seu filme, apesar de algumas pirotecnias dispensáveis com a câmera. O plano-sequência da abertura simplesmente não diz a que veio, mas o diretor se sai melhor em uma cena mais adiante, em que Simonal deixa o teatro no meio de uma canção, toma um drink e depois volta ao palco, na mesma música (provavelmente inspirada em um trecho de “Birdman”). Também não leva a lugar nenhum, mas mostra que Domingues, com um roteiro menos didático, mais livre, pode fazer um trabalho notável.

*Bruno Ghetti foi membro do Júri Abraccine na 42ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.

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