Por Donny Correia*
Brasil, um futuro distante. Distante? A ordem e a retidão religiosa tomaram conta das instâncias governamentais. O corpo policial foi substituído pelos “soldados do bem”, fiéis fardados que reprimem as contravenções com a palavra de Deus e o pesado cajado de Moisés. As ruas estão repletas de autofalantes que proferem mensagens de fé e reprimenda aos cidadãos e ditam seus comportamentos para que estejam em conformidade com os ditames da nova ordem. Nesse contexto, duas amigas, há muito separadas pelos descaminhos de suas vidas, se reencontram na periferia de Fortaleza, no Ceará.
Esta é a premissa básica de Tremor Iê, filme de 2019, dirigido por Lívia de Paiva e Elena Meirelles. Mas, quem imaginar que se trata de uma ficção científica distópica, como um Mad Max brasileiro, se frustrará. E eis aqui a maior inventividade das diretoras, já que ao invés de imaginar uma aventura apocalíptica no Nordeste brasileiro, optam por colocar o espectador diante de uma realidade que não é mais paralela, mas palpável, por meio de suas personagens centrais. Janaína e Cássia são percussionistas, que pertencem a um grupo musical feminino que se envolveu com os históricos protestos de junho de 2013. Quando as conhecemos, Janaína acaba de fugir de uma prisão para onde fora levada após uma repressão policial em meio àquelas manifestações e vai buscar guarida na casa de Cássia. Lá, suas memórias, desveladas em torno de uma fogueira no quintal, nos deixam saber de todas as mazelas pelas quais as meninas do grupo musical passaram quando a polícia repressora capturou e torturou uma a uma. Entendemos que Janaína foi a mais prejudicada, passando anos em cárcere, privada do contato com seu sobrinho e com suas amigas de luta. Sim, aqui, Lívia e Elena, as diretoras, nos fazem saber que a arte é resistência e que é obscuro o limite entre a criação e o protesto.
Como já estamos vivendo justamente o esfacelamento das instituições, o filme se preocupa em estabelecer uma relação simbiótica com o espectador. Desta forma, o tempo da ficção-científica, dos diálogos ágeis e das pirotecnias é substituído pelo tempo morto, pela contemplação, pelo silêncio que ecoa a cumplicidade de amigas cujas vidas foram rasgadas em várias partes por um Estado que prega a fé e a paz. Mas, a que custo?
Tremor Iê é um filme estranho, suscita várias incógnitas em cada um de seus atos. Demora até que percebamos que estamos diante de um trabalho cujas aridez e crueza desempenham o papel da angústia dos sonhos perdidos. Combater os desmandos das autoridades com arte provou-se inútil e danoso. Agora, as personagens se recolhem como se procurassem elaborar os efeitos do caos em suas vidas a partir de uma reflexão intimista.
O filme prima pelo diálogo interno, verbalizado ou não. Quando cada uma das protagonistas dá seu testemunho à outra, ouvimos o que está encalacrado na memória irremovível do trauma. Aliás, fica patente uma certa improvisação nos diálogos pelas atrizes Lila Salú e Deyse Mara, que também assinam o roteiro de Tremor Iê. Portanto, há um quê de work in progress, um trabalho de criação coletiva, que resulta num testamento fidedigno da marginalidade em que as mulheres, as artistas e suas dignidades são atiradas e encarceradas.
No entanto, em meio ao lento passo da decupagem e do desenvolvimento da trama, ainda há tempo para um último plano de revolta ativista contra a autoridade fascista neopentecostal. Um ato para reavivar os ideais, para calar a boca dos que calam os desvalidos à força, para mostrar que, apesar de ferido, este grupo de moças ainda pode se reorganizar, pela arte e pela resistência.
Donny Correia é mestre e doutor em Estética e História da Arte pela USP, autor de” Cinefilia crônica, comentários sobre o filme de invenção” (2019). É membro da Abraccine.