*Simone Zuccolotto
Resistência define o Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, que foi criado em plena ditadura militar pelo historiador, crítico de cinema, professor e ensaísta Paulo Emilio Sales Gomes e em 2022 chega a 55 edições. O Festival não aconteceu por três anos 1972, 1973 e 1974, por conta do recrudescimento da censura.
Memória é outro norte do FestBrasília, as homenagens desta edição lembraram os documentaristas Vladimir Carvalho e Jorge Bodanzky e a medalha Paulo Emílio foi entregue ao pesquisador Hernani Hefner incansável na luta pela preservação do cinema brasileiro.
Diversidade e inclusão são direções sublinhadas pela organização do evento que incluiu nas curadorias, júris e filmes selecionados, mais negros, periféricos, indígenas, LGBTs, mulheres, portadores de deficiência e títulos de várias regiões do Brasil.
Um dos filmes da mostra competitiva de longas-metragens “Mato seco em chamas” de Adirley Queirós e Joana Pimenta, vencedor dos troféus Candango de melhor direção, roteiro, atriz (dividido entre as irmãs Lea Alves e Joana Darc), atriz coadjuvante (Andreia Vieira), ator coadjuvante (coro de motoqueiros), direção de arte (Denise Vieira) e trilha sonora (Muleka 100 Kalcinha) e ainda o Prêmio da Crítica é uma síntese dos três parágrafos anteriores.

O cineasta é filho de migrantes de Minas Gerais que rumou para Brasília no início dos anos 1970 quando a região era um Eldorado de oportunidades. A família se instalou na cidade-satélite de Ceilândia e de lá ele nunca mais saiu. Desde os curtas e os longas-metragens “Branco sai, preto fica” (2014) e “Era uma vez Brasília” (2017), dois que estrearam e foram premiados no Festival de Brasília, Adirley conta as histórias dos personagens vizinhos que cruzam seu caminho diariamente.
“Mato seco em chamas” é essencialmente um reencontro com a realidade da cidade, seu tempo dilatado se contrapõe a um estado de emergência que se apresentava no Brasil dos anos 2017 a 2020. O “Mad Max” (que ele comentou numa entrevista que fizemos em 2015) que gostaria de realizar se somou a referências da literatura, da ficção científica, do western e, sobretudo da imposição da cidade porque é um cinema que tem a vontade de ser libertário, de ser memória territorial e acima de tudo de ser ofício, uma oportunidade para os alijados do processo ressignificarem esse lugar de memória, de tempo e de filmes.
A dupla de diretores, que trabalha junta há oito anos, começou a desenvolver “Mato seco em chamas” na altura em que faziam “Era uma vez Brasília”, ali um elemento ficou muito claro, não fariam concessões um ao outro, por isso os embates foram constantes nos 18 meses de filmagens e nos dois anos de montagem. Adirley e Joana começaram a fazer o filme num clima de melancolia, quando se vivia o desmonte de um país que se acreditava possível. O cenário tinha Dilma Rousseff impeachmada e as leis que indicavam que os royalties do petróleo tinham de ir para cultura, saúde e educação desarticuladas, a realidade de um país imaginado que retrocedia.

O roteiro que borra as fronteiras da ficção e do documentário e que se construiu nas filmagens, com a contribuição do elenco de atrizes não profissionais, moradoras da cidade aponta para o questionamento do que poderia ser a apropriação popular do petróleo pelo Sol Nascente, na Ceilândia, comandada pelas mulheres. A sinopse conta a história de mulheres que descobrem petróleo e começam a praticar uma economia paralela, num suposto país independente chamado Sol Nascente.
Mulheres como a Joana Darc, a Lea Alves, a Andreia Vieira e a Debora Alencar que trazem suas histórias de vida e se deixam levar pelo rigor da direção da dupla de diretores e a forma de um cinema que entra em novos espaços e é elemento transformador da sociedade, para quem faz e para quem vê.
Refletir o Brasil contemporâneo na tecla da distopia não é novidade no cinema de Adirley, que defende que “a distopia é realidade e “Mato seco em chamas” é intervenção e performance pública porque na Ceilândia não tem uma sala de cinema, mas a maioria dos moradores diz que já viu o filme, na verdade, eles viram a performance pública e cada uma montou seu filme na cabeça”.
*Simone Zuccolotto fez parte do Júri Abraccine.