17º Fest Aruanda: Um festival musical

*Ailton Monteiro

Amilton Pinheiro, curador do festival mais tradicional de João Pessoa, me falou que fez de propósito esta seleção muito aberta aos documentários musicais. Considero essa característica muito feliz, pois nos faz lembrar de nossa alegria em estarmos num dos mais ricos países do mundo quando o assunto é música. Além do mais, os homenageados foram dois artistas que tiveram uma passagem muito especial por essa arte, Zezé Motta e Toni Tornado. Ou seja, até para a escolha dos homenageados, o festival tomou esse cuidado. Houve também uma homenagem póstuma a Gal Costa, na noite de encerramento. 

O grande vencedor do festival, aliás, que recebeu os prêmios de melhor filme segundo o júri oficial e o júri da Abraccine, foi “Fausto Fawcett na Cabeça”, de Victor Lopes – embora, em quantidade de prêmios, o vencedor tenha sido o ótimo “Propriedade”, de Daniel Bandeira. Ao vermos Victor Lopes e Fausto Fawcett subirem ao palco para a entrega do prêmio final, ao som de “Kátia Flávia, a Godiva do Irajá”, vimos que a escolha foi, sim, acertada, pois o clima foi de festa. 

“Fausto Fawcett na Cabeça” – Divulgação

O filme nos apresenta, de maneira muito inventiva e singular, um artista também singular, que teve seu auge de popularidade nas décadas de 1980 e 90, mas cujas facetas menos conhecidas do grande público se deram nos anos seguintes. Um dos aspectos mais brilhantes de “Fausto Fawcett na Cabeça” é o modo como o diretor Victor Lopes incorpora a estética do artista biografado e foge com frequência de uma cinebiografia tradicional. Há o fato de o biografado estar vivo e tê-lo ajudado a compor com o cineasta a obra, a partir de novas performances e de reencontros com colegas para criar no calor do momento novas composições. Como não sorrir na hora que Fausto e Carlos Laufer compõem uma canção de improviso com base numa espécie de visão de Fausto sobre uma fotografia recente de Brooke Shields? Destaque também para o modo como o cineasta capta esse momento, com uma distorção da imagem dos artistas, com recursos visuais muito interessantes. Aliás, as intervenções visuais de Lopes no filme são de encher os olhos, chegando até mesmo a mudar a paisagem de Copacabana.

Outro destaque do festival foi “Andança – Os Encontros e as Memórias de Beth Carvalho”, de Pedro Bronz. O curioso desse filme sobre uma das sambistas mais importantes da história da música brasileira é que a maior parte de suas imagens foi gravada pela própria cantora ao longo de muitos anos. O que o filme faz é juntar essas imagens, dispostas de maneira livre, sem seguir uma ordem cronológica amarrada, à história de vida pessoal, mas principalmente profissional da sambista. O que logo me encantou de cara foi sua aproximação com Nelson Cavaquinho e Cartola, dois verdadeiros poetas da nossa musica. Tanto que tudo que vem a seguir, no quesito parcerias, deve deixar mais entusiasmados os fãs do samba e do pagode. Costurando a história da cantora, há a história política do Brasil, em especial na campanha das diretas já, quando ela teve participação decisiva. No mais, como não sabia de detalhes de seus últimos dias de vida, fiquei comovido com a cena de um de seus shows finais.

Sobre “Manguebit”, de Jura Capela, quem viveu a juventude nos anos 1990 certamente sentiu a alegria de ver e ouvir Chico Science & Nação Zumbi, uma banda tão grande e tão importante que percebemos um esforço por parte do diretor de dar um espaço em pé de igualdade não apenas a Chico e a mundo livre s/a (a segunda banda mais famosa do “movimento”), mas também às outras bandas e aos outros artistas pernambucanos surgidos nesse boom ocorrido nessa década tão particular. Há também um espaço para falar um pouco de um filme que surgiu na esteira do sucesso dessas bandas, “Baile Perfumado”, de Paulo Caldas e Lírio Ferreira. 

Sob outro espectro da música brasileira, mas que também entra em conexão com a música mais moderna, por assim dizer, tivemos o delicioso “Lupicínio Rodrigues – Confissões de um Sofredor”, de Alfredo Manevy. Além de o filme ser um convite a adentrarmos a vida e a obra de Lupicínio Rodrigues, saí da sessão com a certeza (mais uma vez) de que o Brasil possui uma das melhores músicas do mundo. Isso porque Lupicínio, em determinado momento, comenta sobre as mudanças ocorridas na música brasileira, com o advento da bossa nova, do iê-iê-iê e do tropicalismo, enquanto seu estilo foi ficando “ultrapassado”. Aprendemos, inclusive com áudio do próprio cantor e compositor, muito de sua história e percebemos o quanto sua música segue viva, tendo sido gravada por vários artistas contemporâneos. A propósito, aquela versão de Gal Costa de “Volta” é de fazer chorar.

“Lupicínio Rodrigues – Confissões de um Sofredor” – Divulgação

“Os Doces Bárbaros” (1977), de Jom Tob Azulay, foi exibido em sessão especial e acompanha os ensaios, as entrevistas, ouve os artistas em sua intimidade nos bastidores e, o mais importante, nos oferece apresentações maravilhosas dos quatro (Caetano, Bethânia, Gal e Gil), passando por diversas cidades do Brasil. Agora, claro que o diretor não ia prever que seu documentário acompanhando o grupo na turnê seria brindado por um acontecimento que tornaria seu filme ainda mais divertido: a prisão de Gilberto Gil por porte de maconha em Florianópolis. A primeira canção que ouvimos é a alegríssima “Os mais doces bárbaros”, que costumava abrir os shows já elevando o espírito da plateia. Misturando Jesus com a mitologia do Candomblé, discos voadores, a natureza e a arte de cantar, essa canção sintetiza um pouco o som do grupo. E o tom do filme em si. 

O encerramento do festival se deu com “Belchior – Apenas um Coração Selvagem”, de Camilo Cavalcanti e Natália Dias. Vejo esse documentário como um aquecimento para futuras obras que consigam se aproximar ainda mais da genialidade e da sensibilidade de Belchior, se não do ponto de vista formal, sendo mais inventivo, poderia ser mais convencional, mas trazendo depoimentos importantes para ajudar a contar a história da vida e da obra do nosso Bob Dylan do sertão. A dupla de diretores opta por não usar depoimentos de outros, mas imagens de arquivo e histórias contadas pelo próprio artista, em entrevistas para a televisão. Um destaque muito importante do filme está na presença de Silvero Pereira recitando as letras de algumas das mais poderosas canções do artista cearense e mostrando que elas também sobrevivem sem a música, praticamente com a mesma força. O próprio Belchior dizia que começava suas composições pela letra, e era por ela que a música nascia. Mais um motivo para se prestar atenção no que ele cantava. O documentário é curto e passa a sensação de incompletude, mas se fosse longo também passaria, já que o artista é inesgotável. Fica a minha gratidão por essa homenagem carinhosa em forma de documentário.

No mais, vale destacar que, na mostra de curtas paraibanos, o filme vencedor foi uma animação que presta tributo a várias figuras importantes da cultura do estado, em especial os artistas da música. “Era uma Noite de São João”, de Bruna Velden, apresenta a música como solução para o difícil momento que passamos durante o isolamento social, trazendo alegria para o povo. Pensando bem, não há melhor remédio.

*Ailton Monteiro fez parte do Júri Abraccine.

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