A desconstrução de um abismo

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João Nunes*

Escrevi dois textos sobre “Que Horas ela Volta?”. O primeiro no lançamento do filme e, o segundo, quando da sua indicação como representante brasileiro ao Oscar de filme estrangeiro. No primeiro texto tracei um paralelo com “Casa Grande”; no segundo, com “Central do Brasil”.

O cinema brasileiro tem larga tradição em abordar a classe pobre (ou menos favorecida), tradição que se materializa principalmente no contexto da favela e do sertão. Por isto, ganha relevância que nos três filmes temas desta mesa os ricos também sejam contemplados como objetos de dramaturgia, levando em conta que “Casa Grande” foi realizado por um diretor que pertence ao universo dos ricos. E mais relevante ainda que os ricos não sejam vistos como maus porque ricos.

Em ambos (“Que Horas ela Volta?” e “Casa Grande”) observamos os conflitos de famílias ricas com os empregados. Entre eles um abismo que fica menos abismo a partir da ação de alguém. Em “Casa Grande”, a ação é do filho do patrão rico; em “Que horas ela Volta?”, da filha da empregada.

Sim, há um abismo econômico que separa os ricos e os pobres no Brasil e nosso senso de justiça nos faz almejar, ao menos, condições mínimas de sobrevivência para todos. Porém, nos citados filmes, os ricos são maus e bons, como pobres são maus e bons, porque, antes de tudo, independentemente da questão social, são seres humanos e, como tal, vivem dramas como qualquer pessoa, com todas as contradições, vilanias e bondades.

A tragédia grega, nosso espelho dramatúrgico, aborda quase na totalidade as grandes paixões e as grandes contradições humanas. Porém, é justo que a dramaturgia brasileira enfoque nossas diferenças sociais porque elas fazem parte da nossa experiência cotidiana e, portanto, falamos da nossa aldeia, daquilo que está próximo de nós e que interfere na nossa vida.

Talvez pareça, mas não é fora de lugar a pergunta sobre o que importa mais: A questão econômica ou a existencial? Certamente as duas. Contudo, qual é o anseio da personagem Jéssica, a filha da empregada em “Que Horas ela Volta?” Pode até ser o bem-estar econômico no futuro, mas no presente imediato, ela anseia que a mãe deixe de ser subserviente, que tenha dignidade e que invista energia e tempo para cuidar dela e do filho dela em vez de atender o filho da patroa. Note que são três questões profundamente existenciais, antes de econômicas.

E Anna Muylaert não cai na fácil armadilha do maniqueísmo. Veja, por exemplo, o comportamento do pai e dono da fortuna da família onde a mãe de Jéssica trabalha. É certo que ele tem interesses outros em relação a Jéssica, mas é ele quem oferece o quarto de hóspedes à filha da empregada e lhe presenteia com um quadro e a leva para conhecer a futura faculdade e a um passeio no edifício Copan. Poderia, se quisesse, exercer o poder de dono da casa, como faz a patroa. Mas não. E Fabinho, o filho, compartilha a piscina com Jéssica, além de um cigarro de maconha e a trata como alguém socialmente igual – mesmo não sendo.

Se em “Casa Grande”, a conciliação está na maneira como o filho rico se realiza no afeto do empregado da casa, em “Que Horas ela Volta?” a filha da empregada parte para o confronto. Jéssica tem absoluta noção do tal abismo existente entre ela e Bárbara, a patroa da mãe. Porém, está disposta a encarar o desafio de mudar a própria história. Não se trata de mudar o mundo, mas o mundo dela – o que é bastante.

E ela se prepara para o confronto usando a melhor arma existente: o estudo. E tem dignidade (e ensina o significado desse sentimento à mãe). E, ao exemplificar na prática ao sentido de dignidade, ela acaba num lugar bem longe do quarto de hóspedes da mansão do Morumbi, sonhando com dias melhores, mas agindo para que eles sejam realizados. Quem sabe um dia ela também se torne rica. Por que não?

Abordar tal tema nos dias de hoje no Brasil não é fácil. Tempos de confrontos sociais em que tendemos a fazer uma redução primária de que pobres são bons e vítimas e os ricos vilões e opressores. O problema, sabemos, é muito mais complexo.

Anna consegue com um filme levantar a questão dos conflitos sociais em tempos de confrontos abertos num país dividido e se sai muito bem. Mas não usa discursos inflamados ou palavras de ordem. Há, sim, um entendimento dela a respeito do quão humano nós somos, estejamos no Morumbi ou no Campo Limpo.

Exatamente por isto, é significativa (e linda como solução cênica) Val entrar na piscina. Mais que uma libertação da personagem, representa o modo como Anna Muylaert enxerga a questão da divisão de classes difundida no país de hoje como dois tipos de pessoas separadas pelo referido abismo, como se vivessem em países distintos: a diretora e roteirista usa a delicadeza (e não o belicismo) para falar de mudança interna da personagem – e de esperança.

Central do Brasil – Desde “Central do Brasil” (1999), o Brasil nunca esteve tão perto de entrar na lista dos cinco indicados ao Oscar na categoria filme estrangeiro, – talvez “O ano em que meus pais saíram de férias” (Cao Hamburger, 2006), que ficou entre os nove selecionados.

A suposição de que conhecemos os votantes da academia, a carreira internacional de “Central” e “Que Horas ele Volta?” (mesmo com diferenças acentuadas), mas, principalmente, a temática, servem como estímulo para falar das pontes existentes entre os dois filmes.

Ambos se estabelecem a partir de conflitos regionais entre o Nordeste, tido tradicionalmente como pobre, e o Sudeste rico. Em “Central” essa ligação se dá entre o Rio e o Nordeste como região (pois se trata de um road movie), em “Que Horas ela Volta?”, o cenário conecta São Paulo especificamente a Pernambuco.

E, nos dois casos, os diretores buscam a catarse. Porém, se no filme de Anna há uma crítica social contundente, Salles se atém apenas à redenção da personagem central, Dora (vale ressaltar que Salles também é um diretor rico).

A catarse de “Central do Brasil” passa pela experiência mística de Dora numa igreja popular e que a transforma como pessoa. Em “Que Horas ela Volta?” a catarse se dá pela conscientização da personagem Val. No desfecho, Jéssica vai estudar na FAU, faculdade pública, o que, provavelmente a impedirá de trabalhar. Val deixa o emprego para, em vez de cuidar do filho dos outros, cuidar da própria filha e a do neto.

Nos dois casos, saímos dos grandes temas existenciais e retornamos ao prosaico tema da economia doméstica. A conscientização de Val nos impõe uma pergunta que o filme não faz: quem irá sustentar a casa?

*João Nunes é crítico de cinema do jornal Correio Popular de Campinas.

**Texto apresentado no Seminário Abraccine “O Cinema Brasileiro Atual e as Questões Sociais”, durante o 48º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro

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