Entrevista: Abbas Kiarostami em perspectiva

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Roger Lerina*

Apontado pela crítica internacional como um dos maiores cineastas de todos os tempos, Abbas Kiarostami foi o primeiro realizador iraniano a ganhar uma Palma de Ouro do Festival de Cannes (com “Gosto de cereja”, em 1997). Em seu trabalho, Kiarostami recupera a estética neorrealista, acrescida de uma visão filosófica e poética sobre a vida, que não descarta um sutil viés político. Algumas características do trabalho do diretor são a preferência por atores não profissionais e crianças, a rodagem em locações naturais e o aproveitamento no produto final de improvisos e imprevistos sucedidos nas filmagens. Estrela maior da Mostra de SP deste ano, o artista também foi celebrado com uma exposição fotográfica e o lançamento de um livro. Em um hotel de São Paulo, ele concedeu a seguinte entrevista.

Seus filmes são muito apreciados aqui no Brasil e em diversos países do Ocidente, apesar das diferenças culturais. A que o senhor atribui essa aceitação?
Acho que a linguagem do cinema é apreciada no mundo inteiro. Nossos países têm tudo diferente, língua, cultura, religião, mas as semelhanças entre os homens é maior que as diferenças. Nossas raivas, amores, dores de dente são as mesmas. As diferenças culturais não são importantes. Quando você tira um retrato de uma pessoa, é possível notar de onde ela é por causa das roupas, por exemplo. Mas, se você tira um raio X, as costelas são iguais.

Seu filme “Cinco” (2003) é uma experiência contemplativa radical, composta por cinco longos planos-sequência de paisagens de uma mesma praia. O senhor está perseguindo em seu trabalho uma espécie de abstração cinematográfica, abrindo mão totalmente da narrativa?
“Cinco” é realmente uma experiência nova dentro do caminho que tenho trilhado. Mas acabou. Não vou continuar nesse tipo de experimento porque não é muito popular. Acho que Cinco me deu o que eu queria que me desse. Vou voltar a fazer filmes um pouco mais narrativos, porque o público acostumou-se a essa linguagem. O espectador para filmes como Cinco é muito raro. Você tem que interpretar esse filme como uma obra muito pessoal, que fiz para mim. O espectador precisa de outro tipo de satisfação quando senta na poltrona do cinema. Mas, se ele olhar para Cinco da mesma forma que olha da janela do apartamento dele para dentro de outros lares, “Ah, estes são recém-casados, aqueles vão se separar”, ele vai gostar. Se o público levasse esse tipo de curiosidade para o cinema, não precisaria de narrativa. Mas o público não leva…

Por falar em público, há um senso comum a respeito do cinema iraniano, qualificado por muitos como sendo autocomiserativo, insistindo em histórias tristes e mesmo trágicas. O que o senhor pensa a esse respeito?
São poucos os filmes iranianos que são exibidos no Brasil, não se pode julgar. Esse tipo de filme chega aqui talvez porque seja o único que pode sair do Irã. Temos filmes bons e filmes ruins. Um filme lamurioso pode ser bom ou ruim. Exemplo disso é o filme iraniano “Tartarugas podem voar”, que está nesta mesma edição da Mostra: é extremamente lamurioso, mas vale a pena ver, é muito bom. Entendo a reação das pessoas quanto a esses filmes que exploram a tristeza. Temos comédias também, e elas são mais populares. Quando o cinema fala de uma dor humana, é sempre triste. Infelizmente, estamos vivendo num mundo trágico. Eu sou o tipo de pessoa que foge de filmes que provocam lágrimas. Mas, pensando melhor, não posso criticar as pessoas que fazem esse tipo de filme, porque não vivemos em um mar de rosas.

Em “Dez” (2002), pela primeira vez uma mulher é a protagonista de um filme seu. Fale de sua visão da mulher no cinema iraniano, tanto na frente da câmera quanto atrás, caso da diretora Samira Makhmalbaf, por exemplo.
Sempre coloquei mulheres nos meus filmes em razão de seu lugar na sociedade, respeitando seus direitos. No início da minha carreira, trabalhei como publicitário, e nunca usei as mulheres nos meus comerciais para vender produtos. Tenho uma diferença de opinião com os diretores iranianos a respeito do papel da mulher. Eles mostram a mulher no cinema como uma pobre-coitada, muito fraca, que apanha e não tem direito a nada. Jamais vi isso na mulher iraniana! Minha mãe, minha esposa, minhas irmãs, minhas amigas, todas são mulheres fortes, poderosas, afirmativas. É estúpido mostrar a mulher assim, esse é o tipo de filme que exagera e manipula a condição feminina no Irã. Existem filmes assim porque a fórmula deu certo no Ocidente. Eu jamais farei isso! Em todas as partes do mundo, as mulheres são muito mais inteligentes e independentes do que os homens. Essa imagem de coitadinha, infelizmente, tem aceitação. Certa vez, no Irã, uma diretora comemorou o fim da rodagem de seu filme com uma festa. O filme era desse tipo, mostrando as mulheres como vítimas. Na festa, falei com ela: “Você pode me dizer qual é a semelhança entre você e aquela mulher que você mostra no filme? E qual a semelhança entre o homem que está lá no filme e seu marido, esse pobre-coitado que está aí do seu lado? Por que você faz esse tipo de filme?”. Porque, ao contrário do que mostrava no longa, essa diretora dançou a noite inteira lambada com vários homens enquanto o marido observava sentado.

As crianças em seus filmes também fogem ao estereótipo de vítimas. Em “Dez”, por exemplo, o garoto, filho da protagonista, é muito esperto e quase tirânico com a mãe.
Quando escolho o elenco dos meus filmes, procuro pessoas especiais, que possam se expressar bem. Esse menino de “Dez” é excepcional dentro da classe média iraniana e foi escolhido porque fala muito bem e disse o texto corretamente. Mas, de modo geral, nunca vi em lugar nenhum, a não ser nos filmes iranianos, pessoas tão coitadinhas, sejam crianças, mulheres ou homens, a ponto de você falar o que quiser para elas sem que reajam. Isso é muito falso. Nos meus filmes, você vê o que realmente é. Minhas crianças normalmente são muito teimosas. Mas essa teimosia é uma energia humana que todos devem ter, teimosia para viver, para alcançar o que se quer. Uso a teimosia pelo lado positivo. Alguns diretores iranianos preferem enfatizar os aspectos negativos das coisas. Eu sempre faço alguma coisa no filme para a pessoa crescer. A perseverança, por exemplo, faz parte da vida.

O movimento, tanto no espaço quanto no tempo, ocupa uma posição central nos seus filmes. Muitas vezes, esse deslocamento é feito de carro. O senhor já disse que o automóvel é um ambiente tão bom para filmar quanto uma casa ou uma rua. Mas a reincidência desse elemento em sua obra, com filmagens feitas tanto de dentro de veículos como do lado de fora, acompanhando o trânsito, transformou o carro em fetiche nos seus filmes.
Falo bem sobre isso no documentário “Dez sobre Dez”. Gosto muito dos planos fixos, mas acho que são cansativos. Por isso, alterno esses planos estáticos com tomadas em movimento, o que é bastante adequado estética e tecnicamente. O filme não fica muito lento, nem cansativo.

Como o senhor vê a questão social no cinema feito no Terceiro Mundo?
O filme encarado como obra de arte tem um efeito muito longo no espectador. Mas, se é feito como entretenimento, seu efeito dura apenas o tempo da projeção. O cinema social é muito delicado. Se ele se distancia da arte, vira jornal. Esse é o perigo: um cineasta social que abdica de fazer um filme artístico é o pior inimigo desse conteúdo social. Esse tipo de filme acaba não tendo relevância social e política nenhuma. Infelizmente, não vejo tanto filmes latino-americanos quanto eu gostaria. Os Estados Unidos tiram o direito de vermos filmes de outros países. Na última vez que vim para o Brasil, vi um filme muito bom, chamado “Eu tu eles” (2000). Mas não tenho visto muitos filmes brasileiros. Por exemplo, Walter Salles não é um diretor especificamente brasileiro, ele é internacional.

E o fato de Walter Salles ser um diretor “internacional” é positivo ou negativo?
Óbvio que é muito bom! A arte deve ser internacional. A primeira característica de um objeto artístico é não ter fronteiras. Um bom filme tem que ser entendido em todo o mundo. O benefício de um diretor tornar-se internacional é que as pessoas acabam relacionando-o com seu país natal. A gente lembrava do Brasil por causa do Pelé. Agora, nos lembramos do Brasil também por causa do Walter Salles.

* jornalista e crítico de cinema; texto originalmente publicado no jornal Zero Hora em 6 de novembro de 2004, quando o cineasta iraniano teve retrospectiva de seus filmes apresentada na Mostra de São Paulo.

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