Por Ivonete Pinto*
É de se admirar a capacidade de alguns críticos em Brasília em conseguir organizar as ideias em torno de Era uma vez Brasília (2017) e até defender o filme com segurança, apontando para detalhes do enredo. De fato, poucos tiveram essa capacidade, e esta autora não se encontra entre eles.
Ter assistido aos anteriores A Cidade é uma Só? (2011) e, principalmente, Branco sai, Preto Fica (2014), deveria ser condição privilegiada para a compreensão do concorrente nesta 50ª edição do Festival de Cinema de Brasília. No entanto, foi de pouco auxílio ter conhecimento do universo do diretor Adirley Queirós, pois o que predomina no filme atual é a confusão de tempos cronológicos, numa narrativa incompetente para permitir que a plateia entre no filme. Curiosamente, a produção levou, além dos prêmios técnicos de Fotografia e Som, também o de Melhor Direção. Se considerarmos que é um filme com todos os ingredientes da autoralidade, com evidentes deficiênicas de roteiro, é realmente um prêmio curioso.
Antes, porém, é preciso afirmar que os cineastas em geral deverão sempre prestar homenagens a Adirley Queirós. Foi inesquecível seu gesto de dividir com os outros diretores de longas o valor do prêmio nada simbólico de 250 mil reais, quando venceu o Festival de Brasília há três anos com Branco Sai, Preto Fica. Adirley e seu coletivo de cinema da Ceilândia, o CeiCine, não nadam em dinheiro e o gesto implicou em três dimensões políticas: solidariedade com os colegas concorrentes, a ideia de que quem ganha como “melhor” não significa que ele seja superior, pois todo julgamento estético é subjetivo, e por fim que o próprio festival poderia rever seus conceitos e usar de outra forma seus recursos.
Por tudo isto, este ano havia uma predisposição para o encantamento. Apesar de Era uma vez Brasília não ser um fracasso, devido à super expectativa gerada por Branco Sai, Preto Fica e pelo entorno político do filme e de seu diretor, desapontou o público brasiliense que lotou a sala, que vibrou na apresentação da equipe, mas no final aplaudiu sem o entusiasmo que o filme prometia.
Adirley Queirós é herdeiro do cinema marginal (ou udigrudi, ou de invenção), onde a liberdade estética (a “feiura”) e narrativa (a esculhambação) eram valores. Esse referencial, hoje, mais do que tudo é político e por mais que um estrangeiro – havia alguns em Brasília – possa pensar em Blade Runner, a precariedade e inventividade são brasileiras. A sucata que se transforma em equipamento de uma nave espacial, usada numa peça de teatro não implicaria em questões de verossimilhança. No cinema, a cenografia lida outros códigos e isto pode ser um problema. No cinema de Adirley é uma qualidade estética e política, pois imbricada com o que quer contar e a maneira como quer contar.
O estilo de Adirley, a seu favor, assentado na escassez e na liberdade de criação, são ilustrativos, portanto bem-vindos para expressar nosso tempo e nosso País. E a complexidade com o caráter documental dos seus filmes só os tornam mais interessantes. Em Branco Sai parte-se de um episódio envolvendo um baile funk para uma viagem intergaláctica. Em Era uma vez os fatos do filme anterior não são citados e o documental está nos enxertos de discursos de políticos no tempo atual. Nada que autorizaria o festival a etiquetá-lo como “documentário” no catálogo. Mas a sinopse enviada pela equipe ao festival diz “Este é um documentário gravado no ano 0 P.G. (Pós Golpe), no Distrito federal e região”. Documental sim são algumas cenas, alguns discursos, inclusive de Temer, mas dizer que o filme é um documentário nos parece uma viagem intergaláctica…
O mimético enredo, para decifrá-lo, só com a ajuda da referida sinopse: “Em 1959, preso por fazer um loteamento ilegal, o agente intergaláctico WA4 é lançado no espaço. Recebe uma missão: vir para a Terra e matar o presidente Juscelino Kubitschek no dia da inauguração de Brasília”. Até aí, tudo bem, a confusão cronológica começa porque a viagem espacial dá errado, o personagem cai no tempo atual (na verdade, 2016, ano do golpe), e os fatos são contados por Marquim da Tropa (o rapper cadeirante de Branco Sai), numa versão que talvez não seja fiel. A impressão que fica é que o filme deveria ter um peso nos anos 50, na era Juscelino, e o impeachment da presidente Dilma se sobrepôs ao plano, tomando conta do enredo.
É de se perguntar, num questionamento histórico-político, qual o propósito de matar o presidente eleito Juscelino Kubitschek, e equipará-lo, assim, com um presidente golpista? Seria um alvo equivocado ou simplesmente um problema de roteiro? A junção Juscelino-Temer não dá liga. O fato do filme incorporar situações documentais não significa que um roteiro pós filmagem não possa ser desenhado.
O enredo
Fazer cinema, conforme Adirley Querós defendeu na coletiva em Brasília, é ser anti-estado. “Nosso filme não adora a Dilma, nosso filme odeia o Temer. É diferente”.
O tom desta resposta, na coletiva, serve para ilustrar o fato de que o diretor praticamente teve que explicar o filme no dia posterior. Ok, os filmes de Glauber Rocha, como a Idade da Terra, tinham que ser explicados também, mas parece que a pretensão do discurso político de Adirley é apenas pretensão (que começa com o título, a emular jocosamente clássicos como Era uma Vez no Oeste, Era uma Vez em Tóquio…). Parece também que Adirley partiu do princípio que sua invenção de futurismo funcionou em Branco Sai, hiper premiado (11 prêmios na 47ª edição do Festival de Brasília, incluindo o de Melhor Filme e Prêmio Abraccine, e prêmios internacionais como o da Fipresci no Festival colombiano de Cartagena); repetiu então a fórmula e perdeu o frescor, a novidade da invenção, como a sacada do passaporte para atravessar a fronteira Ceilândia-Brasília, memorável. Perde na comparação por isso, e por não ter a potência do fato real propulsor.
Também o tempo da viagem intergaláctica prejudica o filme. Para mostrar que o personagem se perde entre um tempo cronológico e outro, ficando a vagar numa espécie de limbo, tem-se um tempo enorme do nada-acontece que nada-acrescenta. Não há para onde olhar. O problema não seria a não-ação, mas uma não-ação estéril, que resulta em uma gordura. Ou seja, sobra tempo (o filme tem desnecessários 100 minutos).
O tempo estendido, no cinema contemporâneo “de fluxo”, como preferem alguns, valoriza a temporalidade como aspecto de linguagem, que repercute no perfil estético da obra. No entanto, há que ter uma razão, deixar um plano onde nada acontece por um tempo que soa demasiado, pode funcionar para informar e para propor ao espectador entrar na atmosfera do filme. A junção destas duas funções do tempo estendido nem sempre se realiza. É o caso de Era uma vez Brasília. Isto porque há uma esterilidade que está no roteiro. Matar presidentes pode ser bacana, mas é preciso ir além, especialmente num longa.
O filme custou 350 mil reais, envolveu 16 pessoas na equipe e levou três anos de produção. Levando em conta estes elementos, poderíamos compreender as falhas, exceto as de roteiro. E a esterilidade está no roteiro pobre em ideias (diferente de Branco Sai, rico em ideias).
A relação orçamento-roteiro-público pode ser feita com a seguinte hipótese: se tivesse tido condições de dedicação exclusiva para elaborar o roteiro, passado por pitchings, etc., talvez o resultado fosse outro. Adirley Queirós e seu coletivo da Ceilândia merecem e precisam adentrar neste sistema de produção que garanta condições de trabalhar melhor o roteiro. A diretora de fotografia Joana Pimenta (premiada em Brasília), portuguesa, vai co-dirigir o próximo filme com Adirley, mais um sobre as relações sociais, humanas em torno de Ceilândia e Brasília. Espera-se que o roteiro seja melhor desenvolvido.
Adirley constrói uma obra ímpar, que inclui o curta Rap, o Canto da Ceilândia e os dois longas citados. Isto por si só precisa ser comemorado, enquanto consistência de uma temática político-estética. Louvável também como mensagem: é possível fazer longas com poucos recursos . É ruim para os profissionais que precisam fazer mil bicos para viver, mas é possível. E já que temos distorções quanto às leis de incentivo que podem despejar milhões em filmes que não chegam a 2 mil espectadores, o cinema de Adirley é o mais modelar quanto ao custo-benefício. Custou apenas 350 mil e chegará a um número razoável de espectadores (mesmo que só nos festivais e por streaming) e obterá reconhecimento pelas premiações, muito mais significativo do que produções caras, que se pretendem “comerciais”, que querem dialogar com mais de 1 milhão de espectadores e ficam bem longe da meta.
Em Brasília, Era uma Vez… foi exibido com o curta Carneiro de Ouro (2017), de Dácia Ibiapina, sobre o cineasta piauiense e naïf Dedé Rodrigues. Há quem cometa a comparação com o cinema sem recursos e improvisado de Adirley. Mas são cinemas outros. Adirley, em que pese sua simplicidade de discurso, sua inserção (o tal lugar de fala) como cidadão de classe baixa de Ceilândia, tem objetivos elaborados, estudou cinema e hoje percorre circuitos de festivais no Brasil e no exterior. Atentar mais para o roteiro, não implica aburguesar seu cinema, implica sim em levá-lo para um panteão de “qualidade” (a subjetividade do termo envolve risco calculado) que seus filmes podem vir a alcançar. Uma produção baixo orçamento, de pegada anarquista, pode contar com boas e consistentes ideias que não vão trabalhar contra a obra. Podem somar.
Recurso que tem sido o grande aliado dos filmes de pouco dinheiro, é o som. No caso Era uma vez…, ele é todo construído pelo som (Guile Martins, Daniel Turini e Fernando Henna), que sem dúvida melhora a narrativa (as vozes como a de Temer, os tiros, os sons das manifestações de rua, foram tirados das 72 horas de material filmado). O golpe perpassa o filme. O som, mais do que as imagens, faz a narrativa, mas não resolve a inconsistência das ideias.
* Ivonete Pinto é jornalista, professora e crítica cinematográfica. Texto originalmente publicado no site Calvero