Filme sueco vencedor da Palma de Ouro busca polemizar o papel da arte

Rafael Carvalho*

 

Dois filmes exibidos na Mostra SP reacendem as discussões sobre o papel e a liberdade artística nos dias atuais – quando as forças conservadoras têm conseguido promover censuras medievais. O mais disputado deles é o longa sueco “The Square”, atual vencedor da Palma de Ouro em Cannes. O outro é uma bela (e dura) surpresa vinda da Geórgia, “Scary Mother”.

Com “The Square”, o diretor Ruben Östlund tenta criar um retrato sarcástico e de humor negro que envolve os limites da arte. Faz isso a partir das escolhas (profissionais e pessoais) de um curador de um museu sueco às voltas com uma nova e polêmica instalação, a “The Square” do título. É algo como um quadrado desenhado no chão onde as pessoas lidam com situações de respeito e tolerância ao próximo.

Mas, ao invés de se concentrar na dinâmica e nas consequências da obra em si, o filme prefere seguir o cotidiano e os problemas do dia a dia de Christian (vivido por Claes Bang), pai divorciado mas dedicado às duas filhas, ainda que seja retratado como homem um tanto quanto patético e infantil. Nesse sentido, os personagens de Östlund (que já havia feito o maravilhoso e hilário “Força Maior”) lembram um pouco os sujeitos idiotas dos filmes dos irmãos Coen.

Mas, em “The Square”, incomoda quando os momentos de humor advindo do comportamento estranho e infantil desses personagens abobalhados soam gratuitos demais. Algumas cenas parecem estar ali somente para gerar aquele momento de graça e constrangimento passageiro, diferente do que acontece no cinema dos diretores norte-americanos.

A atriz Elizabeth Moss, por exemplo, faz uma participação como uma jornalista que entrevista Christian, mas acaba tendo um caso com ele. Há uma cena de discussão entre os dois, no meio do museu, que é hilária, mas logo a personagem dela some da trama e tudo aquilo visto antes parece desaproveitado no roteiro.

“The Square” é um filme muito consciente da sua vontade de provocar atritos sobre o que seja a função e os limites da arte – financiada, inclusive, por uma elite burguesa que, de certa forma, também é ridicularizada no filme. Entretanto, quando precisa aprofundar tais discussões, mesmo que através do humor, o filme se esquiva demais delas, como se bastasse somente tangenciar as polêmicas.

Viver para escrever

Em uma outra chave bem diferente, o filme georgiano “Scary Mother” radicaliza a proposta do fazer artístico através de uma personagem inusitada: Manana (Nato Murvanidze) é uma dona de casa que, por hobby, está escrevendo um livro. Seu marido e os filhos aguardam pelo resultado final, mas não depositam nenhuma confiança ou admiração pelo trabalho dela.

No entanto, os escritos de Manana não são nada inocentes ou o tipo de trama romanesca que se espera dessa esposa e mãe devotada. Pelo contrário, ela desenvolve um interesse por violência, sexo e todo tipo de bizarrice, flertando com o surreal, e ainda surpreende com um estilo de escrita afiado e poderoso.

Tudo soa muito grotesco, mas efusivamente vivo e pulsante nas poucas palavras que vemos Manana ler para a família estupefata. O choque é total. A partir daí, ela rema contra a maré enquanto leva adiante a vontade de publicar o livro, mesmo contra a posição de todos – com exceção do dono de uma papelaria do bairro, o único que defende seus escritos e a incentiva a não desistir.

A diretora estreante Ana Urushadze se mostra uma bela promessa, tanto porque conduz com muita segurança uma história nada comum, como também empreende uma trama que não tem nada de previsível nos rumos que essa história vai tomando.

Manana, aliás, é uma personagem fascinante porque parece estar alheia a uma realidade imposta socialmente que ela não quer mais vivenciar – a de dona de casa pacata, sujeita às convenções conservadoras de um país que viveu sob o regime soviético. Sem necessariamente enfrentar a todos, ela segue driblando as barreiras que lhe surgem, mas entende que os caminhos do fazer artístico trazem suas consequências. E ela parece disposta a questioná-las.

*Rafael Carvalho é jornalista e crítico cinematográfico, membro da Abraccine.

**Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde.

Cobertura completa: 

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http://atarde.uol.com.br/cinema/noticias/1907800-filme-sueco-vencedor-da-palma-de-ouro-busca-polemizar-o-papel-da-arte

http://atarde.uol.com.br/cinema/noticias/1908422-o-provocador-cineasta-michael-haneke-decepciona-com-filme-pouco-inspirado

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