José Umbelino Brasil*
FestAruanda 2017, festival que se apropriou do título do filme ícone do cinema moderno brasileiro, Aruanda, com a intenção de nominar e demarcar a sua identidade, chegou na sua décima segunda edição apresentando um rol de filmes que compõem um esboço significativo da cinematografia brasileira contemporânea. Na tela, a exposição desse número substancial de películas demonstrou o revigoramento da narrativa e da encenação dramatúrgica que acontece na produção cinematográfica do país. Projetados, os filmes totalizaram a imagem de um Brasil, persistente, insistente, que não desiste de representar a sua própria cara, desfigurando e distanciando-se dos padrões canônicos, pré estabelecidos dos cinemas engomados e globalizados.
A produção cinemeira vista no FestAruanda desemboca em retratos típicos da cena atual, marcada por trabalhos que expõem questões de gênero, da memória e da sobrevida. Filmes que rebuscam vidas, do poeta em “Torquato, todas as horas do fim”, de Eduardo Ades e Marcus Fernandes, do escritor em “Callado”, de Emilia Silveira e do músico Marcelo D2 em “Legalize Já”, de Johnny Araújo e Gustavo Bonafé. Ou que contam a estória de simples anônimos, caminho trilhado em “Pela Janela”, de Carolina Leone. No tratamento do envelhecimento e da morte como em “Abaixo a Gravidade”, de Edgard Navarro e “Antes do Fim”, de Cristiano Burlan. Na reconquista territorial da senhora feudal, representante da casa grande carcomida, exposta em “Açúcar”, de Renata Pinheiro e Sérgio Oliveira. Na produção que mistura o gênero do terror para tratar historicamente do racismo em “Nó do Diabo”, de Ramon Porto, Gabriel Martins, Ian Abé e Jhésus Tribuzi. Filmes que põem o pé na estrada na tentativa de encontrar um destino utópico, da quimera, da retratação dos indivíduos e do seu lugar na história. São relatos de personagens atrás de uma solução para equacionar a derrota do desemprego, da velhice, ou da inevitável morte.
No quadro dos filmes de curtas-metragens tem o que trata do ato dramático da mãe coragem a sugar o esperma do filho, numa alusão erótica profana do mito Jocasta, ou do que parte em busca de Deus encontrando no seu lugar uma mulher negra. Do desespero transevangélico ao voyerismo lúdico homoerótico, e o que ultrapassa a camada da rua da tortura. No sentido experimental, os curtas são exemplos instigantes da ousadia que o tempo e o espaço permitem aos seus autores.
Dois filmes, um de curta-metragem ”Atrito”, dirigido pelo estreante Diego Lima e o longa-metragem “Abaixo a gravidade”, de Edgard Navarro foram os escolhidos e premiados pelo júri da Abraccine num debate de autopsia crítica. O primeiro, “Atrito”, um ensaio ficcional que expõe o choque comum e doméstico da possessão materna sobre o filho aprisionado no seu quarto, deixando aflorar uma sexualidade que beira ao absurdo realista. Adensa o trabalho o fato dele ser resultado de uma oficina de extensão universitária. O segundo, “Abaixo a Gravidade” pode ser uma alusão indireta ao histórico “Viver” de Akira Kurosawa, isso se for enxergado na ótica da velhice se digladiando entre a doença terminal e o desejo em se permanecer vivendo e amando. É antes de tudo uma peça do reconhecido Edgard Navarro, superoitista, agora declarado cinemeiro, ou seja, aquele que procura fazer cinema a qualquer custo. Reconstruindo o celebrado “Super Outro”, declamado em versos por Caetano Veloso, “Abaixo a Gravidade” completa a trilogia iniciada com “Eu me lembro” e “O Homem que não dormia”. Em certo sentido, no recente filme, o autor se faz presente na assinatura digitalizada da atualidade e, como de hábito, se projeta como um fantasma sobrepondo os personagens que vagueiam do espaço lúdico rural ao caos urbano soteropolitano, jogando merda no retrovisor e exigindo do espectador uma acuidade no olhar cinemático.
O FestAruanda encerrou o ciclo de festivais do país em 2017 fazendo uma justa homenagem a Ruy Guerra, um dos mitos cinemanovista e anjo avesso do cinema glauberiano. Reapresentou e presenteou a atriz Elba Ramalho na projeção de “A ópera do malandro”, uma tradução chicobuarquiana, parte da filmografia do homenageado mor. Personalidades presentes iluminaram o FestAruanda dos irmãos Carvalho, Vladimir e Walter, referências sine qua non do cinema brasileiro a outras marcantes, como a de Paulo Caldas, precursor do cinema pernambucano de hoje, apresentando seu mais recente trabalho “Saudade”, também, saudado pelo Festival. Sincera, a homenagem a dramaturgia paraibana, se assim a podemos denominar, na figura do excepcional ator Servílio Holanda. Além da intensa série de homenagens, os debates sob a batuta de Maria Rosário Caetano, preenchiam com esmero o saldo das projeções, enquanto, críticos, atores, atrizes e transeuntes desfilavam alegoricamente no espaço cênico festivo exposto num cenário de mar azulado aonde se derrete o ponto mais oriental do país, o Cabo Branco.
*José Umbelino Brasil foi membro do Júri Abraccine no XII Fest Aruanda.