Márcio Sallem*
A 12ª edição do Fest Aruanda, realizada na acolhedora e aprazível João Pessoa, na Paraíba, não abdicou do seu nobre papel de ser o motor de indução de crítica e reflexão a respeito do cenário social contemporâneo que tem atravessado, a duras penas, a democracia brasileira, ainda tão jovem e imatura. Com uma seleção consistente e admirável de longas e curtas-metragens, o Festival demarcou muitas das conquistas sociais de décadas passadas, embora sem descuidar de enxergar aqueles fantasmas que reagem sempre que o progresso invade o status quo do conservadorismo. Ao mesmo tempo, o Festival enfrentou, corajosamente e municiado da metáfora, da alegoria e do simbolismo típicos da arte em geral, problemáticas que teimam em perdurar no social.
Os longas-metragens Açúcar, de Renata Pinheiro e Sérgio Oliveira, e O Nó do Diabo, do quarteto Ramon Porto Mota, Gabriel Martins, Ian Abé e Jhésus Tribuzi, debruçaram-se sobre a questão racial e os esqueletos cujas chagas provenientes da escravidão até hoje sangram. O último, produção paraibana, emprega a linguagem narrativa do gênero de terror para, em uma antologia eficiente que parte do presente e viaja ao passado, explicitar quão profundas são as raízes do racismo atual. Já o primeiro justapõe a casa grande e o engenho como símbolos perenes da estratificação desigual da sociedade, originada na raça, quando Bethânia, personagem interpretada por Maeve Jinkings com seu talento habitual, começa a experimentar, com ares de realismo fantástico, o gosto do veneno amargo de uma história de abuso e exploração. Enquanto, no início, Bethânia pavoneava-se com o cabelo alisado e o vestido alvo, ao final, ela reconhece sua origem mestiça, tal qual de toda a sociedade, com mechas crespas e o figurino tingido de terra. Descobre também, a custo alto, ter sido parte do problema por tanto tempo, ao invés de contribuir com a solução.
De fato, desde o filme de abertura, o documentário biográfico Clara Estrela, dirigido por Susanna Lira, a edição do Fest Aruana demonstrou comprometimento em resgatar a herança nacional africana e sua importância na formação sociocultural, tal como fizera Clara Nunes, a talentosa cantora que morreu precocemente, mas não sem antes gravar na MPB seu samba inspirado nas tradições afro-brasileiras.
A propósito, não faltaram personagens femininas marcantes. Em Tentei, curta-metragem de Laís Mello, a atriz Patricia Saravy interpreta uma mulher com fios grisalhos, rosto marcado e aura pesada, mimetizada na fotografia hostil, que acorda antes do galo cantar para, enfim, denunciar o marido violento, apenas para esbarrar na burocracia que a obriga a reviver o trauma de que tenta, sem sucesso, livrar-se. Já no documentário Deus, de Vinícius Silva, a mãe solteira negra Roseli encara a tarefa de internalizar suas preocupações e angústias para atender as necessidades do filho e assegurar-lhe uma infância feliz. A Roseli, personagem, representa outras centenas de milhares de Roselis, esquecidas nas periferias das metrópoles, em jornadas triplas e subempregos apenas para sobreviver. A propósito, o desemprego é o ponto de partida de Pela Janela, de Caroline Leone e que deu à atriz Magali Biff o prêmio do júri. Na trama, após ser demitida da fábrica onde trabalhava há cerca de três décadas, a sexagenária Rosália, deprimida, aceita o convite do irmão para ir à Argentina e, durante o trajeto, descobre pequenos prazeres aparentemente perdidos para sempre.
Enquanto isto, em Atrito, curta-metragem premiado pelo Júri da Abraccine, a maternidade está acompanhada do gosto, literal, da possessividade quando a mãe vivida por Suzy Lopes, cristã pentecostal, começa a invadir a privacidade do filho único, interpretado por Felipe Espíndola. Seria injustiça também não mencionar o duplo interpretado por Helena Ignez em Antes do Fim, de Cristiano Burlan e vencedor do prêmio do júri. Este drama existencial expõe, com sensibilidade, a angústia para quem o passado é infinitamente mais extenso do que o fiapo de futuro que está por vir; Jean-Claude Bernardet, premiado pelo júri, interpreta o homem que deseja antecipar o fim, despedindo-se com dignidade da vida, ao passo que Helena, sua companheira, a alma obstinada em experimentar o que os anos ainda lhe reservam.
Sobre mortalidade (e tantas outras coisas) também discute o longa-metragem premiado pela Abraccine, Abaixo a Gravidade, dirigido pelo baiano Edgard Navarro. Na narrativa surreal, o pacato e espiritualista setuagenário Bené, interpretado por Everaldo Pontes, tem a chama da paixão acesa novamente depois de se apaixonar pela personagem vivida por Rita Carelli, o que o impulsiona a, finalmente, retornar à Salvador. Enquanto percorre quixotescamente a capital, com um misto de redescoberta e frustração, Bené estabelece contato com sujeitos obtusos e marginais, ensina e aprende, rompe com a etiqueta comportamental e com a mais sagrada das leis da física, a da gravidade. Para Bené, viver não é só prolongar a existência, e sim amar e influenciar o outro, nem que por meio de um exemplo ao mais improvável Sancho Pança.
Em vertente histórica, A Rua das Casas Surdas, de Gabriel Meyer e Flávio Costa, reedita a brutal casualidade com que atuavam os agentes da ditadura militar. A censura da palavra “esquerda”, logo após trocada por “canhota”, era a sugestão presente na trama antes de esta explicitar o que ambos co-protagonistas escondiam dentro do galpão anexo ao prédio onde trabalhavam. É um exercício narrativo oportuno e urgente considerando o caos político em que o país se encontra e os retrocessos sociais que dele podem eclodir. Como, por exemplo, aquele exibido em Hosana nas Alturas, de Eduardo Varandas Araruna, no qual a repressão da sexualidade, impulsionada pelo discurso de ódio de certa denominação religiosa, termina por provocar o surgimento de um monstro.
Não se pode esquecer de citar o bem-humorado curta-metragem O Brado Retumbante, da dupla Fábio Rogério e Marcelo Ikeda, que, empregando como insumos as propagandas eleitorais dos principais candidatos presidenciais das eleições de 2014, teceu uma costura tragicômica e imperdível comparando o discurso democráticos daqueles e a realidade descortinada nos anos subsequentes. No lugar de posicionamento ideológico, objetividade e, principalmente, a confiança no discernimento do público.
Ainda dentro do circuito de exibição, ficções e documentários biográficos pertinentes, tais como Callado, que retrata a obra do escritor e jornalista Antônio Callado, Torquato Neto – Todas as Horas do Fim, sobre o poeta, músico e compositor da Tropicália, Legalize Já!, que retrata a criação da banda Planet Hemp, e Andante, Allegro e Vivace, curta-metragem sobre o trombonista paraibano Radegundis Feitosa.
Através da comunhão entre arte, dialética e práxis social, a 12ª edição do Fest Aruanda, no curso de uma semana, não se alienou do papel do cinema como instrumental ao debate de ideias, nem se acovardou perante forças conservadoras. Retratou, incisivamente, a dinâmica da sociedade contemporânea sem abdicar de entreter, assumindo, finalmente, o papel digno de incentivador do surgimento de cineastas e do fortalecimento do cinema na Paraíba.
*Márcio Sallem foi membro do Júri Abraccine no XII Fest Aruanda.