Olhar de Cinema 2019 :: Tendências

Olhar-2019m

Marcelo Müller*

A estrutura e a proposta do Olhar de Cinema permitem aos curadores bem mais do que apenas selecionar filmes de prévio sucesso e/ou visibilidade nos eventos cinematográficos mundo afora. A eles é possível capturar tendências, inquietações prementes, ou seja, observar inclinações ao costurar filmes que exibem determinados pontos de atração. Por isso mesmo é tão gratificante aderir à ansiedade de conferir o máximo número possível de sessões em Curitiba, missão facilitada pela logística do evento. Neste ano algumas similaridades ficaram mais evidentes: uma sublinhada pelo momento político-social brasileiro e também pelas lutas crescentes por um maior protagonismo feminino no cinema; a outra que diz respeito à aproximação potente entre ficção e documentário, com uma instância atravessando a outra.

A ocupação de espaço e a resistência feminina

Dos dez concorrentes na mostra competitiva de longas-metragens, cinco eram dirigidos por mulheres. A premiação expressou bem esse momento particularmente fértil às cineastas. Diz a Ela Que Me Viu Chorar (2019), de Maíra Bühler, foi eleito o Melhor Filme (aliás, o primeiro brasileiro em oito edições do Olhar de Cinema a vencer o prêmio principal). Chão (2019), de Camila Freitas, garantiu, além do Prêmio do Público, o Prêmio Especial do Júri. Espero Tua (Re)Volta, de Eliza Capai, foi eleito o Melhor Filme Brasileiro, levando em consideração todas as mostras; e Casa (2019), de Letícia Simões, garantiu o troféu concedido pela crítica. Aliás, falando do júri organizado pela Abraccine (Associação Brasileiro dos Críticos de Cinema), ele também foi prioritariamente feminino. Certamente um avanço perceptível e a ser celebrado.  

O Brasil vive um período particularmente complicado, socialmente falando. A ascensão de um extremista de direita à presidência da república trouxe, além da exposição da truculência de alguns, a ojeriza destes pelos movimentos que visam garantir o respeito às diferenças, bem como a democratização dos meios de produção e do conhecimento. Nesse sentido, a oitava edição do Olhar de Cinema também nos mostrou o ímpeto de resistência do cinema tupiniquim. Dos quatro filmes supracitados, não à toa dirigidos por mulheres, três deles abordam dados urgentes. Os dependentes químicos e a questão manicomial é a base de Diz a Ela Que Me Viu Chorar; a luta essencial do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) é a razão de existir de Chão; e Espero Tua (Re)Volta esquadrinha os movimentos secundaristas de ocupação de escolas públicas. Mesmo Casa menciona o escravagismo, essa nódoa histórica.  

A ficção da realidade e a realidade na ficção

Outro dado evidente, pois recorrente, na seleção 2019 do Olhar de Cinema foram os atravessamentos mútuos entre ficção e documentário. Matéria pertinente no cinema desde sua invenção, esse tipo de relação pôde ser observada em exemplares distintos, vindos de matrizes completamente diferentes, porém conceitualmente amalgamados por essa interconexão como dispositivo narrativo. De Novo Outra Vez (2019) borra tais fronteiras ao propor uma ficção essencialmente calcada nas experiências reais da cineasta Romina Paula. De forma bem parecida, o espanhol Entre Duas Águas (2019) se fundamenta na utilização da memória e da proximidade emocional dos atores que interpretam figuras nutridas de suas vivências factuais. Família da Madrugada (2019), por sua vez, é um documentário que não faz questão de esconder a utilização de procedimentos de encenação caros ao âmbito ficcional.

Nesse sentido, talvez o mais radical dos exemplares apresentados no Olhar de Cinema 2019 – dentre os que o autor do texto pôde conferir, naturalmente – é No Alto da Montanha (2019). De forma absolutamente instigante, o documentário se vale de uma encenação minuciosamente elaborada, atrelando-a, paradoxalmente, a uma instância aparentemente observacional. Suas quase duas horas transcorrem num ritmo cadenciado pela repetição dos cotidianos, sobretudo na residência no topo de um vilarejo. Todavia, ao invés de simplesmente reter excertos o cineasta Yang Zhang lança mão de uma orquestração dramaticamente potente. A fertilidade, então, está na habilidade com que a realidade é cerzida pela ficcionalização. Aliás, bom apontar também Naomi Campbel (2013), assim como a obra homenageada da cineasta Camila José Donoso, como fruto dessa tendência tão instigante.

Considerações

Distante de aprofundar os tópicos citados, este texto se presta tão e somente a uma observação propositiva, por assim dizer, à leitura do cenário possibilitado pela sensibilidade curatorial do Olhar de Cinema. O maior protagonismo da mulher como criadora audiovisual, desse modo, pode ser atrelada, num primeiro momento, à centralidade feminina nas atuais lutas contra o obscurantismo. Não à toa seus filmes, com certas exceções, geralmente continham ao menos algum componente que apontava à necessidade de resistir aos avanços do conservadorismo tacanho e truculento. Os atravessamentos formais (ficção e documentário) são tão antigos quanto o próprio cinema. Mas, por conta dessa conjunção frequente em Curitiba, tal comunicação apontou a uma pungência narrativa múltipla e fértil.

* Marcelo Müller foi júri Abraccine no 8º Olhar de Cinema em Curitiba

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