30º Cine Ceará: Registro visual da decadência de um povoado

Monica Kanitz*

A polarização política, um dos temas mais recorrentes destes tempos, serve de pano de fundo para o documentário Era uma vez na Venezuela (Érase una vez en Venezuela, 2020 – coprodução entre Áustria, Brasil, Reino Unido e Venezuela), vencedor do prêmio Abraccine no 30º Cine Ceará. Mas a diretora Anabel Rodríguez Ríos mostra este embate em um lugar improvável: o povoado de Congo Mirador, um “pueblo de aguas” perdido ao sul do imenso lago de Maracaibo, região petrolífera e uma das principais fontes de riqueza da Venezuela. Logo na abertura do filme, um narrador anuncia que “este lugar já conheceu dias melhores”.

Por meio de tomadas lentas e uma fotografia deslumbrante, assinada por John Márquez, a diretora vai apresentando a rotina do lugarejo ao espectador. As famílias, que se sustentam da pesca, vivem em casas precárias e construídas sobre palafitas. Muitas vezes, o peixe do almoço é pescado por um buraco do próprio assoalho, mesmo lugar por onde a mãe devolve a água da bacia com a qual deu acabou de dar banho na filha. As crianças, mesmo as muito pequenas, já manejam com destreza os barcos que utilizam para ir à escola ou à casa de algum parente. O contraste entre a natureza privilegiada e a situação quase miserável dos moradores endossa o tom realista do filme, em que o público se torna praticamente íntimo dos fatos.

Nesta “viagem de reconhecimento” pelo Congo Mirador se destacam duas mulheres. Falante e controladora, Tamara é uma liderança do governo, fiel ao ideário de Hugo Chavez (com direito a pôsteres do antigo presidente em seu quarto) e que, na parte inicial do filme, aparece preocupada em conseguir votos para as eleições nacionais de dezembro próximo. A outra mulher é Natalie, a professora da única escola do povoado e com opiniões contrárias ao regime de Maduro, principalmente no que se refere a compra de eleitores – há cenas de negociação entre cabos eleitorais e moradores, com ofertas em dinheiro e até aparelhos celulares. Natalie sofre cobranças pelo seu desempenho na condução da escola e, mesmo com medo, tenta denunciar a perseguição de Tamara por questões políticas.

Em paralelo, Anabel Ríos expõe um problema grave que atinge a região: a sedimentação do lago, consequência da poluição e do descaso com as questões ambientais. Há cada vez menos peixes e as dificuldades de navegação são cada vez maiores, o que já fez muitos moradores abandonarem Congo Mirador – se num passado recente havia 700 moradores, agora a população é metade disso. Como representante do governo, Tamara tenta buscar soluções e atrair alguma melhoria para o povoado, mas esbarra em promessas e no vai e vem burocrático dos responsáveis. É reveladora a cena em que ela, depois de meses, consegue uma audiência com o governador. Mas, quando Tamara vai falar dos problemas do povoado, o político atende uma ligação particular e encerra o encontro.

Indicado pela Venezuela na disputa ao Oscar de melhor filme internacional, Era uma vez na Venezuela é um trabalho de observação e documentação longo e muito atento, que se estendeu por cinco anos. Isso aparece na multiplicidade de temas – política, protagonistas femininas, questões ambientais, cultura local, personagens secundários – e na sensação de que cada um deles poderia ser tratado em um documentário específico, tamanha a força das imagens e do contexto no qual estão inseridos. Mas Anabel Ríos acerta em priorizar o desenrolar dos temas macros. No caso das eleições, vemos desde os preparativos dos moradores para a votação em 2015 e suas reações à vitória da oposição na Assembleia, bem como o esvaziamento da instituição pela Suprema Corte do país alguns meses depois. Enquanto isso, as consequências da sedimentação avançam: áreas cobertas por água no início do filme aparecem, finalmente, tomadas por lama e mato, e muitas casas não resistiram ao abandono. Apesar da diretora não apresentar nenhum juízo de valor ou defender abertamente alguma posição política, é inevitável comparar a construção do filme de Anabel Ríos com a situação sócio-política da Venezuela – diante de ambos, há uma sensação de impotência, de não saber se será possível recuperar o que se perdeu. Mesmo com a beleza das imagens documentadas por Era uma vez na Venezuela, a história de Congo Mirador tende a ficar apenas nas lembranças dos seus personagens.

Em tempo: a diretora, que hoje vive na Áustria, também tem um curta-metragem sobre o povoado. El tonel (2014) foi sua primeira incursão pelo Congo Mirador e foca no cotidiano de um grupo de crianças que vivia por lá. O filme está disponível no Facebook.

*Monica Kanitz fez parte do Júri Abraccine

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