Porque sonhar é resistir: abaixo a gravidade!

Regina Behar*

Abaixo a Gravidade

O XII Fest Aruanda, ocorrido em João Pessoa, entre 30 de novembro e 6 de dezembro de 2017, trouxe à cena, em sua mostra competitiva, uma boa safra de filmes de  longas-metragens.  Escolhi, entre as possibilidades de discussão colocadas, o destaque de um deles, “Abaixo a Gravidade”, roteirizado e dirigido por Edgard Navarro, cineasta baiano. O filme  conta com o excelente elenco atores, formado por Everaldo Pontes, Rita Carelli, Bertrand Duarte, Ramon Vane e Fabio Vidal. A escolha se justifica, em minha perspectiva, pelo tratamento dado ao tema em sua dimensão autoral e originalidade, e pelo humor e inventividade  que lhe conferem força narrativa marcante.

 A história se inicia com Bené, personagem interpretado por Everaldo Pontes, vivendo um cotidiano integrado à natureza numa comunidade rural do interior da Bahia, numa espécie de velhice pacificada, orientada por rituais indianos: ioga, meditação e alimentação vegetariana. Repentinamente, essa rotina sem expectativa e desejos é rompida a partir de dois acontecimentos, a chegada de Letícia, jovem, bela, grávida, que desperta o desejo adormecido no velho apaziguado, e a descoberta de uma possível doença grave.

 Após o nascimento da criança, a partida de Letícia o leva a decidir pela volta a Salvador, impulsionado a lutar pela vida e pela nova paixão.  Ocorre, então, um deslocamento de paisagem e de perspectiva: Bené vai ser arrancado da realidade pacífica do interior para enfrentar o mundo do qual fugira, a cidade de Salvador, com suas misérias urbanas e injustiças sociais. Longe do idílio da natureza, Navarro coloca o personagem em confronto com seus conflitos, entre o desejo carnal reacendido e a ameaça de morte pela doença. Embora explicite a crítica ao sistema político e social dominante, quando Bené se depara com a impossibilidade de realizar um exame por não ter dinheiro nem plano de saúde, ou quando entra contato com a miséria e o desamparo social  dos moradores de rua  no encontro com o personagem interpretado por Ramon Vane, não é exatamente essa a questão do filme, mas, a partir disso, o quanto a pulsão de vida coloca esses seres humanos “contra a gravidade”.

Um personagem importante nessa afirmação, nesse desejo de superação da concretude hostil que puxa para baixo é um personagem anônimo, parte desse mundo ignorado e condenado socialmente pelo peso da miséria: um morador de rua fabrica asas a partir de restos de lixo, reafirmando o sonho do voar e a energia dos recursos internos que mantém o ser humano perseguindo a utopia. Voar remete para a liberdade de desafiar a gravidade, ideia força do filme,  remonta ao mito de Ícaro,  revelando-se em momentos de força simbólica traduzidos em imagens; porque não importa com qual matéria prima se produzem as asas, podem ser até de lixo; se processa nesse lixo  a reconfiguração em  asas que  presentificam o sonho do voo e de uma essência humana que não pode ser reduzida, apesar das condições sociais.

Na cena urbana, também  ganha corpo autônomo um personagem  interpretado por Bertrand Duarte que encarna uma classe média alta em crise existencial. Ele busca saída no tratamento psicanalítico, encenando seu ego numa viagem autocentrada e numa interiorização mal digerida pelo psicanalista sem nenhum compromisso nem disponibilidade para ele, escondido atrás do silêncio protocolar.  Esse personagem apenas cruza o caminho de Bené em sua ida ao hospital, onde as diferenças de classe são explicitadas, pois, quem tem dinheiro pode comprar um tratamento de saúde.

O ápice do filme é a chegada iminente de um cometa que derrubará a lei da gravidade, fenômeno que pode virar tudo pelo avesso, contrariando o peso do concreto, da velhice e da doença.  Nessa dimensão, reafirmando a aposta no fantástico, no surreal, articula-se vontade humana e conspiração da natureza, vitória provisória da pulsão de vida que possibilita a Bené realizar o desejo e concretizar sua relação carnal com Letícia. Essa personagem é trabalhada em dupla chave: como mãe amorosa, traduz o amor filial e platônico por ‘”seu Bené”, mas também encarna uma  outra Letícia,  uma Electra que assume a face da sedução e se relaciona sexualmente com o velho homem apaixonado, e torna momentaneamente real seu sonho de vencer  a decadência física e a impotência.

O filme de Edgar Navarro desafia à lei da gravidade como metáfora condutora e dialoga com esse peso, numa outra  cena memorável: uma réplica da pesada escultura de August Rodin, “o pensador”, atravessa o céu da cidade de Salvador, amarrada a um helicóptero. A imagem desse homem de pedra, pesado e pensando, é alvo do olhar do morador de rua que constrói asas, mas mesmo assim, e paradoxalmente, o homem de pedra voa.

    O filme tem humor e um roteiro inteligente que parece, se olhado superficialmente, tangenciar o delírio. Sua força narrativa vem de uma aposta definitiva na pulsão de vida, no desafio contra aquilo que nos mantém pragmaticamente presos ao chão, e que reduz as possibilidades de criar e sonhar. Poderíamos associar essa força do sonho ao potencial humano de enfrentamento da biopolítica (conceito de Michel Foucault) e seus esquemas de controle dos corpos e do coletivo, eliminando os riscos do desvio em nome da administração calculada da vida social sob o império do capital.

As estratégias narrativas do diretor transitam pelas metáforas, pelo discurso simbólico, pelos questionamentos de fundo filosófico, mitológico e psicanalítico e pelo cruzamento de  simbolismos (destaque para as religiosidades); destaque-se o uso de imagens referenciais que nos reportam ao diálogo com filmes clássicos, como “Beleza Americana”, “Teorema”, “A doce Vida”, por exemplo.  Como resultado temos um filme denso sem perder o humor, levemente caótico sem perder o fio condutor, e fundamentalmente desafiante ao insistir na resistência,  dando asas metafóricas ao sentido da utopia. Aponta, em última instância, o potencial exercício da liberdade contra o peso da realidade opressiva, afirmando-se na tensão entre a fragilidade humana e a força do princípio vital que a dá sentido ao caos da existência. Em tempos sombrios como os que vivemos apostar na potência humana e no desafio à gravidade e a tudo que simbolicamente ela representa é verdadeiramente um alento!

*Regina Behar  foi membro do Júri Abraccine no XII Fest Aruanda. 

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