Por Lúcio Vilar*
Ao se reportar às inquietações, turbulências políticas e o intenso agora do tráfego de ideologias e utopias no emblemático maio de 68 por ruas parisienses – e seus fortes ecos sobre o Brasil e o mundo -, o jornalista Amir Labaki[1] pontuou, de certo modo, a linha curatorial da 23ª edição do Festival Internacional de Documentários É Tudo Verdade, em texto de apresentação do evento. Nesse sentido, ratifica uma constatação que se tornaria espécie de ‘questão basilar’ acerca do gênero de não ficção, ou seja, sua proeminência e prestígio mundial alcançados nos últimos decênios.
“Nestas cinco décadas, nenhuma expressão audiovisual expandiu-se e transformou-se mais do que o documentário. Tê-lo, mais presente em nosso cotidiano, como potenciais realizadores e espectadores regulares, enriquece nossa experiência, aguça nossa sensibilidade e sofistica nossa leitura do mundo, numa era marcada pelo complexo desafio de navegar um mar revolto de narrativas nem sempre piscoso de fatos”, diz Labaki[2].
Nesse mesmo âmbito, porém, sob outro viés, um texto assinado pelo secretário de Cultura do município de São Paulo, André Sturn, também presente no referido catálogo, referencia o festival, atribuindo-lhe o papel de definidor de uma nova relação com os documentários a partir de sua criação:
“Criado em 1996, o Festival É Tudo Verdade provocou uma mudança na forma como os documentários eram vistos no Brasil, criando no público um hábito de assistir a este gênero cinematográfico nos cinemas” [3]. Que o festival tenha contribuído com esse processo de ampliação da assimilação do gênero pelo público espectador, não há dúvidas.
Ocorre que, historicamente, o gênero de não-ficção encontra-se presente, entre nós, desde os anos 1920 sob a égide do ‘cinema silencioso’ com seus cinejornais e filmes naturais. Essa presença vai oscilar ao longo das décadas seguintes, entre períodos de fluxo e refluxo de sua produção, como de resto se verifica com o cinema brasileiro ao longo de todo século 20.
A cobertura da morte do Barão do Rio Branco (1912), transformada em cinejornal[4], por exemplo, é um desses flagrantes memoráveis, com o público dando voltas nas ruas em torno do cinema, no Rio de Janeiro. Havia uma relação efetiva (e afetiva) com o gênero que só conquistaria seu estatuto e reconhecimento nos anos 1930, através da escola Inglesa, via Grierson.
E o que dizer das monumentais bilheterias dos filmes do documentarista Sílvio Tendler, através de títulos como Jango (1984), no aniversário de 40 anos da morte do presidente João Goulart? Com meio milhão de espectadores, o filme ocupa a sexta colocação na lista das maiores bilheterias brasileiras de documentários.
Na seleta lista, o cineasta ocupa duas posições privilegiadas: figura no primeiro lugar através de O mundo mágico dos Trapalhões (1981), com um milhão e oitocentos mil espectadores e na quarta posição do ranking está Anos JK (1980), com oitocentos mil ingressos vendidos.
“O público de documentário é o que assiste na laje, no clube, entre amigos, em uma escola, em uma universidade, e esse público não é contabilizado” [5], advoga Tendler para reafirmar que, historicamente, no Brasil, o cinema documental sempre manteve um público fiel.
[1] Amir Labaki é jornalista, crítico de cinema e fundador/diretor do Festival Internacional de Documentários É Tudo Verdade.
[2] Labaki, Amir. 50 Anos Estas Noites. Texto de apresentação do Festival É Tudo Verdade (edição 2018), publicado no Catálogo do evento.
[3] Sturn, André. SPCINE. Texto publicado no Catálogo da 23ª edição do Festival É Tudo verdade (2018).
[4] Link com imagens do Cinejornal que conquistou o público em 1912. https://www.youtube.com/watch?v=d2fGgJvzR1U
[5] Debate promovido pelo Observatório da Imprensa na TV, disponível no link: https://pt. wikipedia.org/wiki/Lista_de_filmes_brasileiros_com_mais_de_um_milh%C3%A3o_de_espectadores
Afinal, o que é o documentário?
Se a atração pela narrativa do real tem, portanto, laços mais remotos e fecundos na trajetória do cinema nacional desde seus primórdios (até porque ele ‘nasce’ documental, com as imagens da Baía da Guanabara), convêm salientar a reflexão proposta por Danilo Santos de Miranda[1], cujo texto também se encontra inserido no catálogo do É Tudo Verdade deste ano. Ao especular a respeito da essência do gênero, este esbarra na questão de fundo, afinal, o que é documentário?
“Diferentemente da ficção, que se dirige ao mundo para recriar uma circunstância da condição humana, o documentário cria sua circunstância no instante do registro, da captura, no momento mesmo em que funcionam os equipamentos: para se observar e ouvir. Ao ser observada, a realidade escapa, flerta com o jogo de cena. Mas resta capturado pela câmera, ao menos, o encontro entre o cineasta e o mundo. Se esta é a verdade possível, não deve ser negligenciada” [2].
Eis a questão nodal, equivalente à pergunta formulada por Bazin (o que é cinema?) e que o pesquisador e ensaísta Fernão Ramos[3] escolheu como título de livro de sua lavra em que incursiona pelo tema, sempre instigante e controverso em hipóteses, formulações e significações as mais diversas, a depender de temporalidades, dadas as transmutações experimentadas desde o clássico do Flaherty[4] na Baía de Hudson, em 1922.
Nesse particular, a edição 2018 do É Tudo Verdade foi rica em ambiências, texturas, fotografias, roteiros, abordagens temáticas e respectivas montagens/edições. Especialmente no caso dos longas-metragens em competição, são filmes capazes de oferecer um mosaico bastante representativo em opções e linhas estéticas e narrativas que pautam o gênero na contemporaneidade.
Em pesquisa de doutorado[5], desenvolvemos um conceito para o cinema documental a partir da experiência paraibana que remonta ao início do século 20, mais precisamente à década de 1920, e sua interface nos anos 1960, através de Aruanda.
Empreendemos, dentro dessa perspectiva, uma leitura do documentário enquanto dispositivo de descongelamento da história, elemento impulsionador do que nomeamos de liquidez narrativa, decorrência de uma percepção desenvolvida no campo propriamente dito da produção cinematográfica paraibana. Fundado está, por conseguinte, na observação direta e na pesquisa em torno dessas experiências, cujas práticas audiovisuais aproximam-se de um século de história (1923-2023), com registro de lastro documental hegemônico até hoje.
Foi assim com o primeiro cineasta – Walfredo Rodriguez (1893-1973) – que inaugurou as práticas audiovisuais na Paraíba, reproduzindo as imagens dos paraibanos (na tela grande) em cinejornais e naturais produzidos no período 1918-1931. Se Flaherty descongelou o insólito cotidiano do esquimó Nanook e sua família nas precárias condições de sobrevivência no ártico canadense, Rodriguez o faz ao produzir imagens em movimento ao que até então estava circunscrito aos raros registros fotográficos do início do século passado. Vai revelar em 35 mm a paisagem, o cotidiano e a fisionomia dos paraibanos. Ou, dito de outra forma:
Ao rodar mais de 10 mil km, cruzando todas as regiões do interior da Paraíba, entre 1924 e 1928, Walfredo Rodriguez vai descortinar um território, um eco sistema, a pujança econômica e as culturas de um povo que, de outro modo, não se tornaria conhecido, dadas as dificuldades decorrentes da precariedade de infraestrutura (comunicações e estradas), entre outros entraves pré-modernos, quase intransponíveis em 1920. (VILAR, 2015)
A postura será radicalizada em 1960 com a realização de Aruanda. Uma comunidade encravada na serra do Talhado que, não fosse a perspicácia do fotógrafo Linduarte Noronha, aquele retrato em preto e branco manchado de miséria, subdesenvolvimento e resistência da comunidade negra ali instalada, permaneceria confinado e desconhecido. Antes do filme, um ensaio fotográfico ganhou as páginas da revista Manchete, de circulação nacional, rompendo a sombra do anonimato, num primeiro momento.
Na segunda incursão de Noronha, captada por lentes potentes de uma câmera 35 mm – e transformada em imagens em movimento – a dimensão de descongelamento daquela singular história se dá entre o público espectador paraibano e nacional, mesmo sendo a estimativa de abrangência e alcance mais qualitativa que quantitativa.
Importa dizer que a serra do Talhado, com Aruanda, deixou de ser apenas uma área geográfica nos limites territoriais entre brejo e sertão paraibano, para se tornar referência de uma nova simbologia, conforme a própria narrativa do documentário se encarregou de expressar em tom de denúncia social, com todas as letras e imagens do Brasil profundo:
As estiagens prolongadas, o analfabetismo, a fome, o isolamento. Obriga-os a uma vida primitiva, ao sistema econômico improdutivo, formam o inevitável círculo vicioso, da terra calcinada às feiras livres, e destas ao convívio isolado e pobre da região, ao trabalho da cerâmica. Talhado é um estado social à parte do país: existe fisiograficamente, inexiste no âmbito das instituições.[6]
Ao se debruçar sobre o cardápio de títulos exibidos neste É Tudo Verdade, o conceito aqui tratado se aplica fielmente, especialmente nas produções cujas câmeras buscaram escarafunchar o passado e seus espectros em forma de tabus, temas proibidos, indesejáveis e/ou esquecidos. É o caso de Missão 115, doc pautado pela imersão no rumoroso caso da bomba que explodiu no colo de um sargento do Exército no estacionamento do Riocentro, momentos antes de um show comemorativo do 1º de Maio de 1981.
Mais de três décadas depois, o diretor Silvio Da-Rin envereda pelos meandros do sinistro episódio que abortou uma tragédia de proporções incalculável, para montar a cronologia possível de sua arquitetura nos porões da ditadura militar que vivia seus estertores e que por isso mesmo setores minoritários das Forças Armadas tentavam postergar sua sobrevida.
Em linha semelhante é o que faz a diretora Margarita Hernandez, ao retomar e percorrer os últimos passos de Ernesto Che Guevara, entre sua carta-renúncia de importante cargo no governo cubano, uma passagem pela África (Congo) e Praga, na então Tchecolosváquia, para fechar sua trajetória na Bolívia, país em que viria a ser capturado e morto.
Em comum, entre ambos, está a tentativa de reconstrução de uma linha do tempo para fatos pretéritos, além de convergirem na adoção de recursos ficcionais para melhor ilustrar algumas passagens importantes da narrativa. Mas, a prerrogativa do dispositivo para descongelar a história não se restringe exclusivamente ao que no passado se localiza.
Filmes como Auto de Resistência, dos diretores Natasha Neri e Lula Carvalho (Prêmio Oficial de Melhor Documentário Nacional, este ano), operam outro tipo de descongelamento do real, reportando-se a situações do dia-a-dia, isto é, do presente mais imediato. É um contundente recorte de homicídios praticados pela polícia militar contra civis, no Rio de Janeiro. A costura se dá a partir de testemunhos de mães de vítimas que rebatem versões oficiais da PM para esses casos, e o documentário desnuda processos e sessões de julgamento, descongelando, na prática, o que ficaria guardado a sete chaves nos calhamaços, escaninhos e arquivos da justiça que tarda e nem sempre chega para os familiares das vítimas. Quase sempre pretos, pobres e moradores de favelas do Rio de Janeiro.
Assim, o filme é pródigo em descongelar o que está por trás da narrativa oficial, do discurso e das promulgações jurídicas de sentenças, recursos, protelações, etc. Isso se dá no calor da hora, nas intermináveis sessões com a câmera direta nos dois polos opostos pela prevalência da narrativa da contenda: promotores, juízes e PMs versus familiares das vítimas assassinadas e defesa. A narrativa quebra a invisibilidade dos dramas familiares que só ganham repercussão ao justificarem o ibope do jornalismo mundo cão de emissoras de rádio e TV. Com isso, o filme implode o conceito (e a justificativa legal) para uso do auto de resistência, afinal, aproxima-se mais de uma espécie de licença para matar, tal é o volume de registros de óbitos em decorrência dos supostos “tiroteios e confrontos” relatados pelos policiais indiciados e quase sempre inocentados.
Nesse contexto, o Festival É Tudo Verdade se presta a exibir a potência de um gênero em permanente processo de reinvenção, o que só reitera a leitura empreendida por nossa pesquisa de doutorado. O que se sustenta como conceito é a capacidade de dessacralização, peculiar ao gênero documental que se dá através da câmera que invade territórios temáticos e/ou personagens-fatos intocáveis, interditos, confinados, etc. Congelados, enfim, em redes de cumplicidade, protegidos por anteparos institucionais (ou não) apenas subvertidos pela luz audiovisual documental, fazendo esvair toda a liquidez narrativa exposta de forma excepcional em Ex-Pajé, delicado e pungente retrato da fragmentação cultural de populações indígenas, eleito com o Prêmio Abraccine de Melhor Documentário de Longa-Metragem, assim justificado:
Por desvelar processos de destruição material da floresta, simultaneamente à ‘implosão’ da dimensão imaginária do ethos indígena, dado o avanço das igrejas evangélicas, e de posse de uma câmera em assumido exercício de reinvenção do modelo ‘direto’ de documentar o real; pela fluência da fotografia e da montagem em sua simplicidade e sofisticação, que escapam de quaisquer formas de didatismo, e pela potência da denúncia – sem cair no denuncismo.
Drama familiar de alta voltagem, Elegia de um Crime é assumido pelo diretor na primeira pessoa em corajoso e visceral relato sobre o assassínio de sua mãe, a busca pela responsabilização do homicídio e a reconstrução da memória da personagem, dos afetos. Em outra ponta, é vertiginosa a narrativa da conturbada trajetória do cineasta Neville D’Almeida, Cronista da Beleza e do Caos. O filme faz o itinerário de sua iconoclastia enquanto cineasta, expoente do cinema marginal, censurado incontáveis vezes e reivindica seu lugar na história.
Ao fim e ao cabo, o documentário desmonta, desestabiliza e desconstrói a lógica interna que produz e sustenta simulacros, daí sua imperiosa necessidade ante a aridez de uma época de pós-verdades, entre outros artifícios midiáticos e dispositivos discursivos desmobilizadores.
[1] Diretor Regional do Sesc em São Paulo.
[2] Miranda, Danilo Santos de. Observar, Prestar Atenção. Texto publicado no Catálogo do 23º Festival Internacional de Documentários É Tudo Verdade.
[3] RAMOS, Fernão Pessoa. Mas afinal… o que é mesmo documentário? São Paulo : Editora Senac São Paulo, 2008
[4] O filme Nanook of the North foi rodado pelo explorador norte-americano Robert Flaherty na Baía de Hudson, norte do Canadá, com esquimós Inuik, únicos habitantes do lugar, e lançado com grande apelo de publicidade, sucesso de bilheteria e críticas favoráveis, em 1922. A obra serviu para, mais tarde, legitimar o estatuto do filme documentário, embora tal nomenclatura só viesse a ser usada, pela primeira vez, na década de 1930, pelo escocês John Grierson, que viria a se tornar figura de proa no processo de consolidação da escola documentarista britânica nos anos 1940/50.
[5] Vilar, Lúcio Sérgio de O. O primeiro cineasta. Cinema Silencioso na Paraíba – marco zero de uma cinematografia fundada no real – no contexto do cinema brasileiro dos anos 1920. Tese (Doutorado em Meios e Processos Audiovisuais) – Escola de Comunicaçãoes e Artes, Universidade de São Paulo (ECA-USP), São Paulo, 2015.
[6] Trecho extraído do off final de Aruanda, cujo texto é de autoria do diretor Linduarte Noronha que também faz a própria narração do filme.
Artigo completo e referências bibliográficas:
LUCIO VILAR
* Lúcio Vilar foi membro do júri Abraccine no 23º É Tudo Verdade.