José Geraldo Couto *
Beneficiada indiretamente pelo adiamento e enfraquecimento de dois outros importantes festivais – o de Brasília e o do Rio –, a 43ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo apostou fortemente na produção brasileira. Foram mais de sessenta longas-metragens inéditos, o que equivale a uma amostra bastante representativa da safra atual.
Boa parte dessa seleção foi composta por documentários, vários deles dedicados a nomes importantes do próprio cinema (Banquete Coutinho, de Josafá Veloso; Babenco – Alguém tem que ouvir o coração e dizer: parou, de Barbara Paz), da música (Chorão: marginal alado, de Felipe Novaes) e das artes plásticas (Siron. Tempo sobre tela, de André Guerreiro Lopes e Rodrigo Campos).
Houve ainda um estudo multifacetado do processo político desde 2013 (O mês que não terminou, de Francisco Boco e Raul Mourão), um mergulho no dia a dia e nas lutas do MST no sul de Goiás (Chão, de Camila Freitas) e um surpreendente resgate de um episódio histórico deliberadamente ocultado, a instauração de campos de concentração no Nordeste para flagelados da grande seca de 1932 (Currais, de Sabina Colares e David Aguiar). Este último, na verdade um híbrido de documentário e ficção – formato cada vez mais frequente, representado nesta mostra também por A cor branca, de Afonso Nunes, entre outros –, ganhou o prêmio da Abraccine para longa brasileiro de estreante.
Todos esses documentários ou semidocumentários, alguns mais inventivos, outros mais televisivos, são de grande interesse e ajudam a mapear fraturas e cicatrizes que marcam nossa realidade histórica, social e cultural. Mas eu gostaria de falar da ficção cinematográfica brasileira presente na mostra.
Ficção recente
Alguns autores de primeira linha, com obra pessoal já consolidada, exibiram pela primeira vez seus novos filmes: Karim Aïnouz (A vida invisível), Lirio Ferreira (Acqua movie), Eryk Rocha (Breve miragem de sol), Sandra Kogut (Três verões), José Eduardo Belmonte (Carcereiros). Iberê Carvalho apresentou seu segundo longa, O homem cordial, que já havia concorrido em Gramado. Entre os estreantes, o destaque foi Pacarrete, de Allan Deberton, também exibido com grande sucesso em Gramado. Merece atenção também Sem seu sangue, primeiro longa de Alice Furtado, que explora o tema dos mortos-vivos misturando as tensões da adolescência com a tradição do vodu haitiano.
Deixando de lado o melodrama elegante de Aïnouz e a encantadora fábula de Deberton sobre uma veterana ex-bailarina perdida em seus devaneios francófilos no interior do Ceará, dos quais muito já se falou e ainda se falará, talvez seja interessante observar os filmes de Lirio Ferreira, Eryk Rocha, Sandra Kogut e José Eduardo Belmonte em relação aos trabalhos anteriores desses realizadores.
Acqua movie é a retomada, em outro patamar, da relação metrópole-sertão explorada por Lirio Ferreira há catorze anos em seu Árido movie. A conexão entre os dois filmes é dada pelo personagem do “homem do tempo” (Guilherme Weber). No longa de 2005, ele viajava ao sertão para enterrar o pai e entrava em contato com um universo arcaico, marcado pelos códigos machos das vendetas entre famílias e pela manipulação da escassa água pelos coronéis. Agora, são sua viúva e seu filho que viajam à região, encontrando uma realidade modernizada na superfície, mas marcada pela mesma estrutura de exploração e pela mesma cultura patriarcal.
É um filme admirável, de maturidade, em que o talento um tanto turbulento e dispersivo do diretor parece mais controlado, dando margem a uma exploração mais detida dos personagens. A atualização da radiografia da região se dá paralelamente a uma observação profunda da relação entre mãe e filho. E o elemento água – que brilhava pela ausência em Árido movie – aparece aqui como signo poderoso, tendo como pretexto narrativo a inundação da antiga cidade devido à construção de uma barragem.
Também Breve miragem de sol, de Eryk Rocha, estabelece um diálogo profícuo com a produção pregressa do diretor, especificamente com seu longa de ficção Transeunte, de 2010. Em ambos, trata-se da odisseia de um personagem pelas ruas do Rio de Janeiro. No anterior, filmado em preto e branco, um homem solitário de meia-idade buscava construir ou reconstruir espaços de afeto numa cidade crescentemente desumana. No atual, um jovem taxista negro (Fabricio Boliveira) embrenha-se à noite por uma metrópole devastada pela violência e pela miséria. É talvez uma das experiências estéticas mais radicais apresentadas na mostra, com a câmera praticamente colada ao rosto e ao corpo do protagonista, em cujos olhos vemos refletido o mundo conflagrado à sua volta, num trabalho notável de som e de utilização do extracampo.
Microcosmos
Sandra Kogut, por sua vez, conhecida por seus delicados estudos de personagens frágeis ou à margem (Mutum, Campo Grande), entrega-se em Três verões a um veio fecundo de nosso cinema recente, em que a comédia dramática doméstica serve como metáfora ou microcosmo da nossa estrutura social e suas mudanças contemporâneas. Filia-se, grosso modo, numa família de filmes que inclui Que horas ela volta?, de Anna Muylaert, Casa grande, de Fellipe Barbosa, e Domingo, de Clara Linhart e Fellipe Barbosa, entre outros.
A estrutura narrativa é simples e sagaz: as festas de fim de ano de 2015, 2016 e 2017 na mansão de praia de um rico empresário envolvido em grossas falcatruas. Em torno da protagonista Madá (Regina Casé), caseira e governanta da casa, movimenta-se um grupo heterogêneo de personagens de várias classes e gerações. Há habilidade e humor na orquestração dos acontecimentos, que refletem em grande medida a história brasileira recente, mas me parece problemático o retrato que se apresenta da “ingenuidade matreira” das classes subalternas, bem como uma certa edulcoração de seu “empreendedorismo”, sem falar de uma conciliação final de classes. Mas talvez seja rabugice de um crítico que se acostumou a admirar o talento e a sensibilidade da diretora. É, de todo modo, um filme divertido e envolvente.
A ação é espetacular, o ritmo é frenético, o suspense é inflado pela música bombástica e pela exacerbação dos ruídos. Cabe verificar, quando o filme entrar em cartaz, se essa estratégia terá êxito junto ao público. Talvez isso seja decisivo para os próximos passos de Belmonte como realizador.
*José Geraldo Couto integrou o júri Abraccine da 43ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo