Dossiê 43ª Mostra SP: Protagonismo Feminino

Por uma vida mais visível no cinema: o protagonismo feminino na 43ª Mostra

Nayara Reynaud *

Um dos destaques da programação desta 43ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, justamente por ser o representante brasileiro na disputa por uma vaga na categoria de Melhor Filme Internacional do próximo Oscar, A Vida Invisível (2019) pode ser encarado como um dos expoentes de uma das tendências observadas na seleção do evento neste ano: o olhar mais profundo e diversificado no protagonismo feminino, seja ele conduzido por mulheres ou homens na direção e roteiro.

Se a Sétima Arte, ainda em seus primeiros passos, era realizada por uma grande parcela de mulheres – como exemplifica o documentário E a Mulher Criou Hollywood (2016), de Julia Kuperberg e Clara Kuperberg –, a formação de uma indústria cinematográfica acabou instalando a desigualdade de gênero no setor. Sendo permitido a elas o destaque ainda na frente das telas dentro do esquema do star system, muitas vezes, suas representações eram objetificadas, com exceções que trouxeram evoluções a passos lentos ao longo de décadas. A urgência dos tempos atuais acelerou a necessidade dos realizadores ouvirem as discussões feministas dentro e fora do cinema, o que, grosso modo, tem aumentado este protagonismo nas produções, mas nem sempre com resultados além de velhos ou novos estereótipos.

Por isso, este movimento soa bem mais orgânico em casos como o do cineasta cearense Karim Aïnouz, que já em seu primeiro curta-metragem, Seams (1993), versava sobre o universo feminino através do resgate das memórias da avó e das tias-avós que o criaram. Em A Vida Invisível, seu recente longa que recebeu o prêmio principal na mostra Un Certain Regard no Festival de Cannes, ele adapta o romance de Martha Batalha, A Vida Invisível de Eurídice Gusmão (2016), que conta a história de duas irmãs separadas pelo conservadorismo manifestado por figuras masculinas como o pai de Eurídice e Guida. A trama ambientada no Rio de Janeiro dos anos 1950 ganha ares de melodrama tropical nas mãos do diretor e de sua assistente Nina Kopko, que retiram das atrizes Carol Duarte e Julia Stockler um espírito de fraternidade e resiliência frente a um mundo que não permite a elas sonharem ou mesmo ter a esperança de seu reencontro – sem contar a participação especial de Fernanda Montenegro no epílogo e o trabalho competente de todo o elenco.

Esta força das mulheres em diferentes situações e ambientes opressivos é uma tônica da seleção de filmes desta 43ª edição, seja na cinematografia brasileira ou nas produções internacionais. Um exemplo nacional desse protagonismo mais multifacetado veio do mesmo estado do Ceará, com Pacarrete (2019), vencedor de oito Kikitos em Gramado. O primeiro longa de Allan Deberton possui uma personagem-título de atitudes inusitadas que tem o envelhecimento como um de seus algozes, bem como o pensamento tacanho de sua comunidade.

Inspirado em uma história real de sua cidade natal, Russas-CE, o diretor constrói, a princípio com traços caricaturais, esta bailarina aposentada que luta para se apresentar no aniversário do município – se assemelhando à bandeira levantada por uma arte que perdeu seu apelo popular vista no franco-chinês Viver Para Cantar (2019). Sem poder se expressar através do balé, Pacarrete fica cada vez mais depressiva e, acompanhando o estado emocional e psíquico dela, a narrativa muda de tom. Contudo, diferente das autoridades locais, o filme oferece seu palco para ela e sua intérprete Marcélia Cartaxo brilharem nesta história agridoce.

O tragicômico surge igualmente em Depois a Louca Sou Eu (2019), novo longa de Julia Rezende, jovem e prolífica cineasta carioca que apresenta um raro traço de autoralidade dentro da produção comercial brasileira. Na adaptação do livro homônimo e autobiográfico de Tati Bernardi, publicado em 2016, a diretora tem mais liberdade artística, assim como em seu trabalho em Ponte Aérea (2015) e Como é Cruel Viver Assim (2018), para apresentar o cotidiano de Dani, uma mulher que sofre de ansiedade e é interpretada com a destreza esperada por Débora Falabella.

Se é possível julgar a eficiência de todas as suas escolhas nesta difícil tarefa de abordar questões de saúde mental, não é possível dizer que elas não encontrem justificativa em uma linguagem estética e narrativa que segue os altos e baixos da psique da protagonista: uma escritora em busca de uma cura por vários meios possíveis, enquanto tenta levar sua vida profissional, familiar e amorosa, o que também leva esta comédia dramática a essa variação tonal.

O drama inerente da premissa de Três Verões (2019), porém, não encontra espaço no tratamento demasiadamente cômico dado por Sandra Kogut em seu novo filme, que estava na seleção do Festival de Toronto. Na trama que acompanha, através do ponto de vista da caseira Madá, três temporadas de veraneio na casa de praia, no litoral fluminense, de uma família afetada pelas investigações e prisões da Operação Lava Jato, a sensação de déjà vu não se deve apenas pela escalação de Regina Casé em um papel semelhante ao da sua Val de Que Horas Ela Volta? (2008), o aclamado longa de Anna Muylaert. Ela se encontra no fato da cineasta de Mutum (2007) e Campo Grande (2015), desta vez, não encontrar algo de novo na representação da Casa-Grande & Senzala brasileira.

Isso não quer dizer que a produção não atinja em cheio a plateia, provocando inúmeros risos graças ao talento de sua atriz principal. Entretanto, ao alcançar o terceiro verão com um peculiar episódio natalino, a narrativa torna evidente o seu caráter de ser somente um conjunto de esquetes, que deixa escapar o que deveria ser o foco principal; seja temático com a própria sinopse ou dramatúrgico no arco de sua protagonista. Sem desenvolver Madá além do sonho da funcionária em ser dona de seu próprio negócio comprando um quiosque, a personagem tem seu apenas uma pequena brecha para revelar as marcas de seu passado em uma cena emocionante de Casé, quase ao final do filme.

Por outro lado, rígidos conceitos também cerceiam as potencialidades das mulheres à frente dos longas dos estreantes Alice Furtado e Carlos Segundo. A primeira realizou Sem Seu Sangue (2019), título carioca exibido antes na Quinzena dos Realizadores de Cannes, que traz como ousada proposta uma narrativa composta somente por espaçados fragmentos emocionais de uma adolescente (Luiza Kosovski), cuja vida é transformada após se apaixonar por um garoto hemofílico. Algo que se mostra atraente no início, mas se perde nos rumos tomados na segunda parte, fazendo o espectador perder de vista o envolvimento inicial com a jovem Silvia.

O outro traz uma professora universitária (Roberta Rangel) em uma faculdade em greve como figura central no potiguar Fendas (2019). Porém, o cineasta está tão preso à ideia de utilizar alegoricamente uma fictícia descoberta da física quântica que não deixa germinar a matéria principal de seu filme: o fator humano, que parecia ser tão interessante nas longas conversas que o diretor deixa fluir tão bem entre Catarina e sua colega ou seu aluno, mas que não se expande além de uma imagem pixelada dessa mulher.

Em contrapartida, vale ressaltar o protagonismo feminino por trás das câmeras nacionais, com o olhar diferenciado de algumas diretoras sendo reverenciado em premiações dentro e fora do país. Na Mostra, o Júri da Crítica agraciou o trabalho de Ana Luiza Azevedo em Aos Olhos de Ernesto (2018) dentre os títulos brasileiros e o Júri Abraccine consagrou Currais (2019), codirigido por Sabina Colares e David Aguiar, entre os longas de cineastas estreantes. Em Veneza, foi a vez do filme epitáfio Babenco – Alguém Tem que Ouvir o Coração e Dizer: Parou (2019), capitaneado por Bárbara Paz, receber o prêmio de Melhor Documentário sobre Cinema ao captar os últimos momentos da vida e os principais da obra de Hector Babenco.

 

Mulheres (r)existindo pelo mundo

Tal análise seria incompleta sem, ao menos, um rápido panorama da seleção internacional da Mostra, na qual foi mais latente essas similaridades na diversidade do protagonismo feminino em cinematografias de vários pontos do globo.

Os movimentos de opressão e consequente resistência são vistos, por exemplo, no cotidiano retratado pelo documentário Honeyland (2019), de Ljubomir Stefanov e Tamara Kotevska, que, não à toa, foi duplamente premiado nesta edição pelo Júri Internacional e pela crítica. Na linha tênue do registro documental e da narrativa quase ficcional do filme da Macedônia do Norte, o público acompanha uma apicultora no interior do país cujo ecossistema ambiental e social é afetado pela chegada de uma numerosa e barulhenta família na vizinhança. O fato de ser uma mulher não altera diretamente a dinâmica entre os vizinhos, mas as revelações posteriores da protagonista revelam o peso das questões de gênero nos costumes locais.

Tradições que também aparecem no forte compatriota Deus É Mulher e Seu Nome É Petúnia (2019), da Teona Strugar Mitevska, que tem uma mulher lutando contra todo um sistema religioso, policial e judiciário por ousar pegar uma Santa Cruz da sorte, destinada só aos homens fiéis, um patriarcado institucional intrínseco também na vida de uma jornalista que está cobrindo o caso. No caso, trata-se da Igreja Ortodoxa, mas semelhante discurso machista que se apodera das brechas da religião aparece no cenário do fundamentalismo islâmico que poda e mata mulheres em Papicha (2019), o sensível longa de Mounia Meddour sobre uma jovem que tenta fazer um desfile de moda durante a Guerra Civil Argelina. E igualmente na manipulação dos bispos na condenação de Joana D’Arc (2019), um olhar particular do cineasta francês Bruno Dumont para a heroína que virou mártir da mesma Igreja Católica que a condenou.

Um ambiente de violência física e/ou sexual também cerca a adolescente Tati no brasileiro Pacificado (2019), de Paxton Winters; a prostituta Dana no equatoriano La Mala Noche (2019), de Gabriela Calvache; e Benni, a menina indomável pelo sistema educacional e de proteção ao menor no alemão System Crasher (2019), de Nora Fingscheidt, uma das ficções que recebeu o Troféu Bandeira Paulista. Mas quando a figura feminina é colocada como algoz, de alguma forma, a exemplo do francês A Garota da Pulseira (2019) ou do também germânico Lara (2019), os diretores Stéphane Demoustier e Jan-Ole Gerster, respectivamente, levantam o questionamento sobre o quanto o conservadorismo diário afeta o julgamento dos personagens e da plateia sobre elas.

Algumas vezes, um sistema corrupto ou interesses econômicos e geopolíticos pressionam estas protagonistas ao máximo, a ponto de abalar sua estabilidade financeira por desafiar uma grande empresa no islandês A Resistência de Inga (2019), de Grímur Hákonarson. De ameaçar sua liberdade e segurança das pessoas próximas ao denunciar a mentira dos governos britânicos e norte-americanos na produção inglesa Segredos Oficiais (2019), de Gavin Hood. E de duvidar de sua própria sanidade na busca pelo filho desaparecido no sérvio Cicatrizes (2019), longa de Miroslav Terzić que, tal qual o anterior, é baseado em uma história real.

No terreno das relações interpressoais, o sufocamento não é menor na obstinação do exigente treinador que, por vezes, se esquece de ser pai da tenista adolescente no polonês A Filha de um Treinador (2018), de Lukasz Grzegorzek. A superproteção parental é compreensiva em torno da jovem doente no australiano Dente de Leite (2019), um terno trabalho de Shannon Murphy que também foi premiado com o Troféu Bandeira Paulista, porém, igualmente o direito máximo dela de impor os seus desejos. Mesmo quando a comédia foi associada ao drama no indie norte-americano Saint Frances (2019), o longa de Alex Thompson surpreende no tratamento delicado a temas tão espinhosos quanto o aborto, em uma história que tinha tudo para ser controversa, mas revela imenso afeto a seus personagens e suas decisões particulares.

Sem a mesma eficiência, mas suficiente efetividade, o compatriota Paul Downs Colaizzo aposta em uma protagonista que foge do esperado e desafia o público com atitudes errôneas que acabam por humanizar A Maratona de Brittany (2019), ao mesmo tempo em que questiona a ditadura dos padrões de beleza na autoconfiança das mulheres. Mais irregular, o holandês Afterlife (2019), de Willem Bosch, propõe uma desconstrução da imagem maternal de perfeição enquanto aborda a saúde mental em seu último ato. Por sua vez, os dramas e dilemas pessoais e éticos de uma psicóloga abastecem o jogo narrativo de Justine Triet no franco-belga Sibyl (2019), que apresenta uma intrigante personagem-título.

E é claro que, as próprias discussões sobre a desigualdade de gênero no cinema, particularmente em Hollywood, foram transformadas em filme no documentário Isso Muda Tudo (2018), de Tom Donahue, que traz a palavra das próprias artistas do meio para o debate desta questão. Isso não quer dizer que os homens foram desfavorecidos de retratos mais aprofundados este ano e o novo longa de Robert Eggers, O Farol (2019), é um bom exemplo de como trabalhar a masculinidade através da subversão de seus estereótipos. Contudo, este apanhado – que, provavelmente, deixou escapar algum título que se encaixaria neste escopo – tem em vista a observância desses traços em comum na representação feminina nesta 43ª Mostra, em que Amazing Grace (2019) encerra aqui como um ponto fora da curva, em que ninguém e nada é capaz de se opor ao talento transcendental de Aretha Franklin, documentado por Alan Elliott a partir das filmagens de Sydney Pollack de um show gospel da cantora, em 1972.

* Nayara Reynaud integrou o júri Abraccine da 43ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo

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