Yale Gontijo*
É preciso que se diga algo sobre a pandemia reacionarista no Brasil, cristalizada na presença de Jair Messias Bolsonaro como presidente da República. Desenhada para tirar o fôlego dos movimentos sociais e frear o ganho de direitos pelas minorias, a onda conservadora não se “cria” entre as realizações cinematográficas recentes realizadas no Brasil.
Os anos de Eduardo Valente e Sara Rocha no comando do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro foram justamente os anos em que o festival investiu em pautas identitárias tão importantes para os avanços sociais dos últimos anos. As vozes historicamente silenciadas ganharam protagonismo na telas do Cine Brasília, com uma diferença fundamental. Desta vez, as histórias eram narradas por realizadores representantes de cada minoria.
Comandada pelo documentarista veterano Silvio Tendler, a mostra competitiva de longas-metragens de 2020 apresentou uma nova direção, não exatamente nova. O revisionismo histórico e cultural proposto por Tendler nos leva de volta à origem do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. É preciso lembrar que o Festival, iniciado em 1965, foi casa para o cinema novo e todos os questionamentos feitos contra o regime ditatorial de 1964.
O movimento cinemanovista foi o grande homenageado nesta edição do festival realizada extraordinariamente online e transmitida pelo Canal Brasil. O recorte identitário mencionado acima foi melhor sentido na competitiva de curtas-metragens.
Bem mais arejada, a seleção do Festival teve empenho da comissão de seleção presidida pelo cineasta Clementino Junior (com Cíntia Domit Bittar, Edileuza Penha de Souza, André Carvalheira e Nara Normande). O equilíbrio de gênero e etnia entre seus membros, resultou em diversidade entre os filmes de curta duração.
Realizado durante a quarentena do Covid, República é escrito, dirigido e atuado por Grace Passô. Simples, sem nunca resvalar no simplório, realizado com a presença de apenas duas pessoas no set traz um questionamento urgente: o Brasil é um país ou um delírio coletivo? O jogo de transparência e opacidade cinematográfica são manejados à perfeição em um momento em que o país assiste o egoísmo e o negacionismo do brasileiro revertido em recorde de mortes e contaminados.
Por todas essas qualidades, o título foi escolhido como melhor curta-metragem pelo júri Abraccine, formado por André Dib, Marcelo Lyra e Yale Gontijo. Mas, não foi o único filme a receber destaque durante os debates e exibições.
O Brasil é o país mais violento do mundo contra pessoas trans. Se essas violências são um dado do real, então, ele pode ser ressignificado pela ficção. A vibe do curta pernambucano Inabitável, dirigido por Matheus Faria e Enock Carvalho é responder com lirismo aos estigmas impostos a uma das populações mais vulneráveis da nossa sociedade.
O doc experimental A morte branca do feiticeiro negro, de Rodrigo Ribeiro, emociona ao expor a dureza de uma carta de suícidio real escrita por um escravo. Lembra o cinema do artista experimental Arthur Omar em Congo (1972) e Triste trópico (1974) e propõe uma dolorida e necessária revisão do passado escravagista brasileiro.
O abandono parental visto pelo ponto de vista de duas mulheres separadas por um grade faz do paranaense Pausa para o café, dirigido por Tamiris Tertuliano, outro dos destaques desta edição. Em especial, a boa atuação das atrizes Maya e Rosana Stavis.
A poesia de Inabitáveis está em pequenos movimentos e jogos de cena criados para narrar a história de homens negros e gays. A direção de Anderson Bardot também responde com lirismo à violência imposta aos LGBTs no Brasil, país atualmente governado por tristes homens homofóbicos e bárbaros.
*Yale Gontijo fez parte do Júri da Abraccine