*Renato Silveira
Mais antigo festival de cinema realizado no Brasil e situado na capital federal, o Festival de Brasília tem como característica histórica exibir filmes de inescapável caráter político – aspecto que se fez presente na seleção de longas-metragens da 54ª edição, cuja realização virtual, em razão da pandemia de Covid-19, deu-se entre os dias 7 e 14 de dezembro de 2021.
No sentido mais objetivo que se atribui à discussão política, os longas de linguagem documental chamaram a atenção na competição principal. A começar pelo concorrente brasiliense “Acaso”, dirigido por Luis Jungmann Girafa. Utilizando um formato ensaístico e experimental, o filme percorre o centro urbano de Brasília e a câmera se detém em uma dezena de personagens com origens e preocupações distintas. Porém, todos trazem questionamentos que orbitam em torno da cidade como espaço habitável. Daí a escolha da avenida W3 como cenário comum aos enredos. Décadas atrás tida como “coração” da cidade, a via é hoje vista como “anti-ícone da modernidade de Brasília”, nas palavras dos realizadores do longa. Ainda que o caos da estrutura narrativa demonstre certa tendência ao hermetismo, o filme não deixa de ser fascinante no modo como aborda o abandono (político e infraestrutural) da W3 ao passear por ela junto dos personagens. Por sinal, os andarilhos são os que fazem as colocações mais interessantes.
Também caminhando (literalmente) por tema urgente da nossa contemporaneidade está “Lavra”, dirigido por Lucas Bambozzi. O filme adota uma narrativa ficcional para tratar, na esfera documental, do impacto sofrido por comunidades do Vale do Rio Doce, em Minas Gerais, após o rompimento da barragem de mineração da Samarco, em Mariana. A tragédia de novembro de 2015 – que viria a se repetir em janeiro de 2019 em Brumadinho, na Região Metropolitana de Belo Horizonte – move a protagonista (vivida pela atriz Camila Motta) a retornar à sua terra natal depois de 30 anos morando fora do país. Seu objetivo é seguir o caminho da lama tóxica para ver de perto a devastação e, no processo, envolve-se com os movimentos de resistência. Ao utilizar a narração e a câmera subjetivas, o longa imbui a ficção dos fatos sobre o desastre da mineração irresponsável. E por mais que o filme traga dados e denúncias, seu foco está mesmo no lado humano, explorando diferentes camadas e dimensões da tragédia nas vidas de quem morava nos locais devastados. “Lavra” talvez seja o primeiro filme a abordar os lamentáveis episódios das barragens com a profundidade e contundência que se espera. Peca, porém, em seu desfecho, quando, num ato de catarse, reivindica o protagonismo para sua narradora, que toma para si a luta das comunidades – não como ato solidário, mas como apropriação de uma dor que, sim, pode tê-la atravessado, mas continua muito longe de ter sido sentida como por quem teve toda uma vida soterrada.

Em “De Onde Viemos, Para Onde Vamos”, o percurso da diretora Rochane Torres se dá na Aldeia de Santa Isabel do Morro, na Ilha do Bananal, em Tocantins. Lá, ela nos apresenta ao povo Iny, cujo movimento de resistência busca recuperar a essência do próprio nome, além de resgatar e preservar tradições, cultura e modo de vida originários. Com sensibilidade no registro observacional, o documentário vai além de uma proposta puramente etnográfica ao dar voz aos indígenas em depoimentos reveladores sobre suas condições e contradições. Em uma das cenas mais fortes, ao ponderar sobre o número crescente de auto-extermínios na aldeia, um dos líderes afirma: “Suicídio não é da nossa cultura. Foi copiado dos brancos”. Da fotografia em preto e branco fica o simbolismo da beleza natural apagada pela situação de abandono, deterioração, tristeza e opressão vivida pelo povo Iny. O filme possivelmente seria beneficiado se trouxesse mais falas que detalhassem o contexto da vivência indígena, como no depoimento da jovem Narubia Werreria. Ainda assim, trata-se de um feito notável, ao qual o Júri Abraccine concedeu menção honrosa.
Completando o quarteto dos documentários na competição de longas do festival, “Saudade do Futuro”, dirigido por Anna Azevedo, tem muito de sua fruição na abordagem poética sobre a relação de variados personagens, de diversos lugares, com uma certa cultura da saudade. Começa em Portugal, onde o tema surge em diálogos sobre a ausência de pessoas que, por algum motivo, perderam a vida no mar – e o fato de elas não terem sido mais vistas ter impossibilitado o luto. Tal sentimento ecoará adiante, já no Brasil, do outro lado do oceano, onde três mulheres conversam sobre a saudade que sentem dos filhos que a ditadura militar e a violência policial tiraram delas. Em um povoado indígena no Cabo Verde, a saudade é da terra que foi tirada de seus habitantes originários pela colonização. A seriedade que norteia esses encontros é contrastada pela leveza dos depoimentos das crianças cariocas que dizem sentir saudades da casa em que viviam, do pai que está distante e das brincadeiras. Há ainda uma descontraída participação do cantor e compositor Martinho da Vila, versando sobre a saudade que surge de estar em um baile antes mesmo da festa acabar. Vencedor do Troféu Candango de Melhor Longa pelo júri oficial, “Saudade do Futuro” tem uma proposta narrativa que se assemelha a de “Acaso” na estrutura. Mas se sai melhor no acabamento e na fluidez, ainda que, tematicamente, não tenha a mesma relevância que seus pares documentais na seleção.
Dois longas de ficção que competiram na mostra principal também trouxeram temas políticos imbricados em seus enredos. Em “Ela e Eu”, dirigido por Gustavo Rosa de Moura, a disputa pelo espaço afetivo no seio de uma família é exposta quando a personagem de Andréa Beltrão (em atuação premiada pelo júri oficial) acorda de um coma profundo que a deixou em estado praticamente vegetativo desde o nascimento da filha, que agora entra na vida adulta. O (ex-)marido cuida da protagonista ao mesmo tempo em que mantém um novo relacionamento e vive com a nova mulher dentro da mesma casa. Ao desenvolver as reconfigurações desse núcleo familiar, o filme lida com questões como novas formas de amar, a sensibilidade masculina na relação parental e a afirmação da sexualidade feminina. Com o olhar empático e a direção cuidadosa que já havia demonstrado em seu longa anterior, “Canção da Volta”, Gustavo Rosa de Moura evita quase todos os tons mais melodramáticos que esperamos encontrar em dramas familiares que lidam com personagens enfermos. De todos os filmes apresentados por Brasília, este é sem dúvida o mais talhado para o circuito comercial e deverá encontrar sucesso nele. Conta, ainda, com a presença musical de Caetano Veloso, cuja canção “Ela e Eu” empresta não só o título ao longa, mas também o simbolismo poético de seus versos às imagens.
Por fim, “Alice dos Anjos” também traz de outra arte a inspiração para seu roteiro: o clássico literário “Alice no País das Maravilhas”, do britânico Lewis Carroll. Após tantas adaptações do livro para o cinema ao longo de mais de um século e meio desde sua publicação original, o diretor e roteirista Daniel Leite Almeida consegue surpreender a plateia ao transportar passagens e personagens do universo fantástico de Carroll para a realidade local e histórica do sertão baiano. Vencedor do Prêmio Abraccine, o filme ainda incorpora conceitos da reconhecida obra “Pedagogia do Oprimido”, do educador e filósofo brasileiro Paulo Freire. Combinação inusitada e essencialmente política para tempos em que o ensino no país (sobretudo de crianças e adolescentes) é constantemente atacado por governantes com interesses obscuros. Ao mesmo tempo em que oferece uma visão contestadora da nossa realidade social, “Alice dos Anjos” jamais perde a graça e a ternura, contando para isso com números musicais singelos e direção de arte inventiva que faz ótimo uso da paisagem natural. Com sua fabricação praticamente artesanal, o longa faz par com “Rosa Tirana”, de Rogério Sagui, produção também baiana, apresentada na Mostra de Tiradentes de 2021. Ambos os filmes trazem um ar de renovação muito bem-vindo ao cinema infanto-juvenil brasileiro, descentralizando a narrativa da produção nacional voltada para esse público e oferecendo abordagens fundamentadas na cultura regional, e não no universo consumista de influência hollywoodiana. Enfrentar este mercado é também um ato corajoso e político de “Alice dos Anjos”, cujos méritos residem ainda no protagonismo negro e feminino (representado pela graciosa Tiffanie Costa no papel principal), possibilitando que crianças historicamente não contempladas pelo cinema infantil (brasileiro e internacional) possam se reconhecer na tela.
*Renato Silveira fez parte do Júri Abraccine.