Assalto ao 13º quilombo

O NÓ DO DIABO, de Ramon Porto Mota, Gabriel Martins, Ian Abé e Jhésus Tribuzi

Assalto ao 13º quilombo

Por Fabrício Cordeiro*

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Dividido em cinco episódios e dirigido por quatro jovens diretores (Ramon Porto Mota, Gabriel Martins, Ian Abé e Jhésus Tribuzi), O Nó do Diabo abre com o plano de uma casa grande decadente, em 2018, e termina 200 anos atrás, no casarão usado como refúgio de escravos perseguidos (já uma espécie de quilombo, talvez?); abre com a perspectiva do homem branco, um capataz atual, enfezado e com nojo de homossexuais, negros e pobres (Tavinho Teixeira num papel que tem algo de Travis Bickle sem ambiguidade), e encerra sob a perspectiva de uma negritude que agora exige sua revanche histórica. Um dos brilhos do filme é justamente o girar desse ponto de vista, do solitário e desesperado branco, a lutar contra sua própria sombra numa casa repleta de sangue e fantasmagoria, assombrada pela história, à força unida de mulheres e homens negros, que buscam auxílio na memória de seu sangue por décadas derramado. Com a câmera gradativamente do lado dos quilombolas em seu recuo cronológico, do lado de dentro do refúgio, escutando as falas dos escravos enquanto fogem na mata, o cinema de gênero, com suas sombras, gritos e violência, dá a dimensão do horror sentido por quem tenta, por séculos, não morrer.

Contando com três dos criadores (Mota, Abé e Tribuzi) da Vermelho Profundo, produtora de cinema de horror, O Nó do Diabo não economizará em violência gráfica, sangue, corpos rasgados, cabeças cortadas e explodidas, brutalidade visual e sonora que parece condizer não só com o cinema de gênero como também com uma longa tradição racista de tortura, punição, exploração e assassinatos. Há uma dívida a ser cobrada, e o gênero de horror – tão poderoso quando articulado em sintonia com críticas sociais, como Eles Vivem (1988) e os zumbis de George Romero já demonstraram – parece sempre inclinado a querer quitar uma dívida, uma vez que é ele próprio um gênero subjugado, tomado como inferior, “menor”, distante do que poderia ser “verdadeira arte” (aquele papo de alta cultura, da maneira mais vulgar possível…), e que portanto sempre deveria se limitar ao pacotão generalizado do “filme B” ou “trash”.

Se por um lado há aqui uma clara compreensão das regras do gênero e de seus desdobramentos, por outro, a partir justamente dessa compressão, os diretores podem quebrá-las, subvertê-las ou segui-las conforme desejam. É o domínio da linguagem de gênero que lhes permitirá trincar os grilhões que normalmente aprisionariam esse tipo de filme numa mera noção de exercício, quando o que aqui fazem está mais para um movimento de libertação (uma bela rima para um filme que irá tratar justamente da história escravista do Brasil, não) e, a partir disso, de apropriação da linguagem de cada gênero. A tomada das armas, a inversão do ponto de vista, de onde colocar a câmera, fazendo com que o branco tenha seu rosto e seu corpo cinematograficamente apagado e distanciado, desumanizado, até que enfim venha a se transformar num amontoado de sombras e vultos monstruosos a perseguir os escravos resistentes, culminando num último episódio que poderia facilmente se chamar Assalto ao 13º quilombo.

É verdade que em alguma medida O Nó do Diabo irá flertar com filmes B, sempre conscientemente, e ao mesmo tempo num diálogo próximo com nomes do quilate de Brian De Palma (o terceiro episódio, dirigido por Ian Abé), John Carpenter (o último, de Mota) e com um grande gênero consagrado como o faroeste (quarto episódio, de Tribuzi). O Nó do Diabo é, portanto, não só uma revisão de perspectiva histórica, é também uma espécie de revisão capitular de vários subgêneros do cinema. Capitular, vale dizer, mais devido à divisão em anos (2018, 1987, 1921, 1871 e 1818) do que a um caráter episódico que normalmente costuma gerar evidentes irregularidades em filmes-coletânea; embora originalmente concebido como série de TV, tudo indica que O Nó do Diabo seja mais robusto como obra única, filme em que os capítulos se revelam, na verdade, menos contos isolados e mais partes muito bem costuradas de um todo que não ignora sua ambição de, ainda que pontualmente, cobrir 200 anos de história escravista por meio não de grandes eventos, mas de situações muito específicas de caça, fuga e resistência. Unidos por fusões ou sons contínuos, os capítulos passam o bastão para o seguinte como se reconhecessem a real impossibilidade de serem desvinculados – separados por décadas, porém ecoando os mesmos gritos, mesmos rostos de pavor, um mesmo horror. De todo modo, se há algum que se destaca dos demais, este seria o trecho dirigido por Gabriel Martins e situado em 1987; por sua dramaturgia, sobretudo pelas atuações de Clebia Sousa e Alexandre Sena, casal negro que, na busca por trabalho, vão parar no tal casarão, sendo recebidos de maneira autoritária e fúnebre pelos residentes brancos – tem-se aqui um enorme horror de observação, de ser surpreendido pelo desconhecido, por Sena tendo de performar sob uma Máscara de Flandres, enfim, o horror num outro nível carnal e mesmo espiritual.

Praticamente outra personagem do filme, a casa está em todos os episódios, pedra bruta do passado brasileiro, assim como Vieira, o chefe, velho senhor branco, que não envelhece, imortal, Diabo Branco com o rosto do sempre instigante Fernando Teixeira (presença incrível no curta O Desejo do Morto, de Ramon Porto Mota). Exceto por Moby Dick, a obra-prima literária de Melville, e do muito recente Corra!, filme de Jordan Peele, que outras obras trariam a branquitude como um mal encarnado e que poderíamos lembrar de cabeça? Pois nos escritos de Melville de fato a descrição da cor, da grande baleia em todo seu whiteness, está ali como corpo e sinal de ameaça, a morte a rondar, próxima e vigilante, e com o sinhô Vieira, com sua eternidade vampiresca, não é lá tão diferente, uma vez que ele sempre será um rosto, um close, um monólogo, mesmo que o giro 180º da perspectiva complete seu movimento. O inimigo eterno, a ser vencido numa batalha em que será preciso reerguer mortos, desenterrar esqueletos, para enfim tornar o sanguinário também um contra-ataque; em O Nó do Diabo a violência e o acúmulo de agressão não agem apenas em função do gênero, pois passa a ser, também, elemento narrativo: é preciso que se acumule os atos de violência, capítulo por capítulo, que o público encare esse sangue que, em algum momento, transbordará pelas raízes do Brasil e, firme, nos desafiará de corpo erguido.

* Fabrício Cordeiro é crítico cinematográfico. Foi membro do Júri Abraccine no 50º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro.

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