Brasília 50 – Uma reflexão do olhar

Foto: Júnior Aragão

Por Carlos Helí de Almeida*

Foi o diretor mineiro Affonso Uchoa, co-autor, com João Dumans, de “Arábia”, grande vencedor do 50º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, realizado em setembro, quem alertou para o tom dos debates que predominou ao longo dos 10 dias de contenda. “Fiquei um tanto espantando com a disputa em torno de quem pode falar sobre o quê, que dominou as discussões deste ano. Vivemos um momento de angústia e medo. Uma das coisas mais legais que descobrimos com o cinema é o poder da alteridade, de poder falar sobre realidades sobre as quais nós, realizadores, não estamos inseridos”, declarou o realizador, ao receber o Candango de melhor filme, no palco co Cine Brasília.

O desabafo de Uchoa serviu como um educado puxão de orelha em realizadores, artistas, intelectuais e críticos de cinema que alimentaram a polarização dentro e fora das telas de Brasília, em que prevaleceram queixas sobre a representação de determinados segmentos da sociedade nos filmes em competição, em detrimento dos méritos ou problemas de cada obra selecionada. Ironicamente, Uchoa e Dumans venceram a disputa da mais antiga e politizada contenda do calendário nacional com um recorte de uma realidade alheia a eles: “Arábia” é um filme de estrada centrado nas memórias de um trabalhador que acumulou experiências simples porém extraordinárias em cada novo emprego.

O longa-metragem da dupla mineira era dos nove títulos da competição, marcada, segundo o próprio curador da mostra candanga, Eduardo Valente, “por filmes que exploram o conflito ou a oposição em relação ao outro, ou buscam pela identidade”. A seleção abraçava, questões que incendeiam o momento, como racismo (“O nó do diabo”), identidade de gênero (“Música para quando as luzes se apagam”), e rivalidade ideológica (“Construindo pontes”). Mas os 10 dias de programação serviram de arena para incisivas e, às vezes, agressivas, reivindicações de direitos identitários. Mesmo filmes que tentaram espelhar o Fla-Flu de ideias que tomou conto do país nos últimos anos, como o doumentário “Construindo pontes”, de Heloisa Passos, saíram chamuscados.

Em seu filme, Heloisa registra uma tentativa de reconciliação ideológica com o pai, um engenheiro hoje quase octogenário, que viveu o auge profissional durante a ditadura, nos anos 1970. Ele, que se refere ao governo militar como “revolução”, e à deposição de Dilma Rousseff como “impeachment”; revela-se uma figura tranquila e “perigosamente” carismática; ela, a filha, fala em “ditadura” e “golpe”. “Vejo o filme como um exercício do diálogo com alguém que pensa diferente de mim, sobre a dificuldade de entender o outro, nesses tempos tão polarizados, que nos faz negar a existência do outro”, resumiu a diretora. Poucos atentaram para a “ambiguidade que o cinema está começando a perder”, como comentou Daniela Capolato, que contribuiu para o roteiro do documentário.

Centrado no casamento entre um fazendeiro branco e uma menina de 12 anos, nos rincões da Minas Gerais escravagista do século XVII, “Vazante”, exibido no primerio dia de competição, abriu o painel de reivindicações. Drama de época que aponta para a construção do patriarcado brasileiro, o filme que marca a estreia Daniela Thomas na direção solo foi duramente questionado pela suposta superficialidade com que retrata seus personagens negros. “É preciso ter cuidado com a ideia de que algumas dores valem mais do que outras”, chegou a ponderar a cineasta, que ainda saiu de Brasíia com os prêmios de direção de arte e atriz coadjuvante (Jai Baptista).

Os momentos de cordialidade dos encontros dos realizadores com o público foram reservados a produções que garantiam a representatividade de minorias sociais e geográficas, a despeito de suas fragilidades internas. O terno e divertido “Café com canela”, de Ary e Glenda Nicácio, sobre a relação de afeto entre uma mulher enlutada e uma jovem cheia de vida do Recôncavo Baiano, encontrou acolhida efusiva dos que reconheceram na trama uma visão menos amarga e estereotipada da comunidade negra brasileira. O mesmo ocorreu com “O nó do diabo”, de Ramon Porto Mota, Gabriel Martins, Ian Abé e Jhésus Tribuzi, o irregular longa-metragem em cinco episódios que cria uma interessante ligação entre o passado escravagista do país e o gênero terror.

Ausências de confrontos e minorias, no entanto, foram imediatamente identificados como “filmes sobre problemas de branco”, como sugerido em um dos debates, em alusão a concorrentes como “Pendular”, de Julia Murat, sobre a relação amorosa, profissional e espacial entre uma bailarina e um escultor. Críticas raivosas foram disparadas na direção do pernambucano Marcelo Pedroso, autor de “Por trás da linha de escudos”, tentativa de filmar as entranhas do Batalhão de Choque da Polícia Militar de Pernambuco, responsável pela repressão a distúrbios civis – alguém, incomodado com um sequência do documentário, chegou a dizer ao diretor que ele deveria tirá-la do filme.

Houve até quem sugerisse que não havia mais espaço no Brasil de hoje para filmes que não dessem conta da multiplicidade de vozes da sociedade, desqualificando todas as obras que não se enquadrassem nesse objetivo. E que, mesmo estes, deveriam ser feitos por seus legítimos representantes de classe, cor, credo, gênero e geografia. Em tempos em que a cultura brasileira – em especial a audiovisual – sofre ataques de todos os tipos e lados, as tentativas de digirismo que prevaleceram nos debates de Brasília soam anacrônicas e improdutivas, quando não enfraquecedora da própria classe. Em seu discurso, Affonso Uchoa também lembrou: “Somente com a mediação de outro olhar a gente consegue promover encontros entre vidas, entre classes”.

* Carlos Helí de Almeida é crítico cinematográfico e foi membro do júri Abraccine no 50º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro.

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