50º Festival de Brasília: Múltiplo

Foto: Rômulo Juracy

Ricardo Daehn*

Assentada a cintilante névoa de celebração do Cinema Brasileiro, com o sumo da boa arte que resplandece no Festival de Brasília, o cinqüentão evento deixou o legado: múltiplo – com mostras paralelas tão vistosas quanto a competitiva – favoreceu a comunhão de talentos com expressão cunhada em edições anteriores ao próprio evento.
Auto referente, o festival assim se comporta, exatamente por ser bússola para lufadas verdadeiramente criativas, como apontam títulos assinados por mestres como Roberto Santos, Joaquim Pedro de Andrade, Helena Ignez (todos com filmes representados) e, claro, Nelson Pereira dos Santos, exemplar único, valorizado no festival.

Extra-campo da tão sublinhada representatividade, as mulheres diretoras (em competição) amargaram o dissabor, na hora da distribuição dos prêmios Candango. Indisposta a fabular (ou escamotear uma realidade penosa para os negros do século 19) em torno das dores da escravidão, a diretora Daniela Thomas (de “Vazante”) foi a mais açoitada. Sem espaço para debater, sucumbiu à força da imoderada ação de censura criativa, tendo uma obra-prima relegada à míope apreciação de terceiros, escolados na cartilha (sem matizes e arrogante) de laivos setentistas que, no passado, fez até o festival desaparecer, por três anos.

Menor impacto foi reservado à diretora Heloísa Passos, à frente do documentário “Construindo Pontes”, sobre duas gerações apartadas. Mesmo que prêmios, às vezes, pouco digam, a diretora Julia Murat foi solenemente ignorada, com uma fita consagrada em Berlim – “Pendular”, um ensaio sobre a negociação da convivência a dois.

Com o filme mais escancaradamente político, o cineasta Adirley Queirós (melhor diretor) parece ter sacramentado, numa narrativa dispersiva, o momento de impasse e apatia generalizada que teve como bom termômetro aplausos e vaias do dia a dia no Cine Brasília (que sempre abriga a festa). Sereno, mas nunca conformado, o público sobe respeitar as divergências, em prol da arte. Eficiente, nesta linha autocrítica, o melhor curta do evento, de longe, foi “Mamata” (do baiano Marcus Curvelo), urdido no seio do coletivo Cual (Coletivo Urgente de Audiovisual). Comunicação ímpar também foi aliada da cineasta Dácia Ibiapina, que contou da glória do singelo realizador piauiense Dedé Rodrigues, no curta “Carneiro de Ouro”.

Curioso que, mesmo na quarentona ausência do idealizador da festa, o teórico Paulo Emílio Sales Gomes, o show continue, sem jamais esquecer de agitar a panela de seus talentos constituintes; num vira e mexe, estiveram presentes obras de Cristiano Burlan, Kleber Mendonça Filho, Jorge Bodansky, Eduardo Coutinho, Sérgio Borges, Orlando Senna e Fáuston da Silva. Saudosismo maior teve eco no relembrar dos feitos de Márcio Curi e do diretor e articulador do meio audiovisual Geraldo Moraes.

Ousadias formataram as escolhas positivas, na hora da seleção dos títulos mostrados no evento. Um filme de terror paraibano (O nó do diabo) surpreendeu, na medida dos curtas Baunilha e Inocentes. No repertório do inesperado, o júri do evento foi muito feliz, ao destacar a “atuação social” da personagem trans Emily Fischer (do longa “Música para quando as luzes se apagam”). Impactantes, dois curtas (de duas realizadoras) chamaram a atenção — Torre e Tentei.

Outra dobradinha também memorável foi integrada pelos melhores intérpretes: a atriz Valdinéia Soriano (formidável, em Café com canela) e o melhor ator Aristides de Sousa (mesmo com a concorrência acirrada dos colegas de Vazante, Adriano Carvalho, e, de Pendular, Rodrigo Bolzan), por Arábia. Segredo mineiro, revelado na última noite do evento (estendido por dez dias), o longa Arábia (de Affonso Uchôa e João Dumans), harmônico no mix literatura, leveza e simplicidade, não deixou dúvidas de ser dado como o melhor filme.

* Repórter e crítico de cinema, há vinte anos, no jornal Correio Braziliense.  Foi membro do Júri Abraccine no 50º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro.

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