Paulo Henrique Silva*
Assistir a “Azougue Nazaré” neste momento de transição sociopolítica dá a exata medida do sentimento de incertezas que vivemos. O filme de Tiago Melo, grande vencedor do Fest Aruanda, não se completa, não fecha as histórias que começa – o que vale tanto para a grande narrativa, sobre a preservação da cultura regional e o crescimento da fatia evangélica, quanto para as pequenas, a partir dos conflitos domésticos de seus personagens.
Há um clima de suspensão, como se algo grande estivesse por vir. Bom ou mau, não sabemos. Só podemos intuir. As últimas cenas acirram essa dúvida, em que a iminente eclosão de violência alimentada pela divisão de opiniões sobre um festejo secular na cidade de Nazaré da Mata, em Pernambuco, surge ao lado da expressiva força musical e coreográfica do maracatu, ritmo afro-religioso característico daquela região.
É um estado de espera, acompanhando o corte temporal da trama, que acontece às vésperas do Carnaval. São, talvez, os últimos instantes de um Brasil plural que, até então, convivia bem com a diversidade. Ou mesmo uma revolução que parece não vir do mundo material, flerte com o sobrenatural que nos remete a “Som ao Redor”, de Kleber Mendonça Filho, um dos produtores de “Azougue Nazaré”.
O misticismo se faz presente com os caboclos de lança, principais elementos do maracatu e da cultura pernambucana. São guerreiros que, no sincretismo religioso que baseia o folguedo, têm relação com Ogum, senhor da guerra e da agricultura – nada mais apropriado para um cenário de canaviais. Ogum é o último combatente quando os demais já perderam a esperança, o que parece se casar com o final “aberto” do longa.
Se há uma certeza no filme é a impossibilidade de convivência harmônica, explicitada na relação entre Catita e Darlene. O primeiro interpreta um personagem-chave no maracatu e vê a sua mulher evangélica se afastando cada vez mais dele. Num filme carregado de tensão por essa bipolaridade, o choque se dá por meio da palavra. Não por acaso o grande “rival” é um pastor, que faz o contraste com as loas dos mestres do ritmo musical.
Desconhecemos o motivo de Mestre Barachinha ter virado um pastor, mas essa mudança é significativa no equilíbrio de forças, como os momentos sobrenaturais deixam entrever. Barachinha é um personagem real de Nazaré, durante muitos anos à frente do grupo Cambinda Brasileira. Para quem é familiarizado com este universo, compreenderá mais rapidamente o que simboliza o papel dele, entre tantas outras referências.
Essa abordagem documental oferece maior intensidade à narrativa e também sintetiza a percepção de Melo sobre o custo do aumento de evangélicos no Brasil. Enquanto, de um lado, vemos autênticos participantes do maracatu reproduzindo o cotidiano, do outro a representação é visivelmente falsa e destoante, com os personagens escondendo a verdade de seus desejos interiores.
Descompasso que está manifestado em outra sub-trama, de uma garota que trai o marido. Não há justificativas a não ser o fato de ela gostar de outra pessoa. No lado evangélico, o errado exige uma explicação religiosa, nem que para isso tenha que deturpar as palavras da Bíblia. A liberdade para interpretar o que lhes convém diz muito do estado de coisas, especialmente no Brasil de 2018.
* Paulo Henrique Silva foi presidente do Júri Abraccine no 13º Fest Aruanda, em João Pessoa.