Celso Sabadin*
Como diziam os antigos locutores esportivos, ao “apagar das luzes” do ano de 2018, um terrível ano de 2018 no qual se prenuncia o fechamento do Ministério da Cultura e o travamento dos mais diversos mecanismos para o desenvolvimento da atividade artística brasileira, somos surpreendidos por uma notícia alvissareira: a ótima safra do cinema produzido no estado da Paraíba. Durante o 13º Fest Aruanda, realizado em João Pessoa já nos últimos dias deste nefasto 2018, fomos brindados com seis longas-metragens exibidos na mostra paralela, mas que bem mereciam estar na mostra principal. Todos da Paraíba. Anotem: “Beiço de Estrada”, de Eliézer Rolim; “Estrangeiro”, de Edson Lemos Akatoy; “O Seu Amor de Volta (Mesmo que ele não Queira), de Bertrand Lira”; Rebento, de André Morais; “Sol Alegria”, de Tavinho Teixeira, e “Ambiente Familiar”, de Torquato Joel.
Tais longas demonstram não apenas o ótimo nível de qualidade – tanto técnica como temática e narrativa – alcançado pelo cinema realizado naquele estado, como também uma bem-vinda diversidade apresentada pelo conjunto. Documentário, drama intimista, comédia anárquica, linguagem experimental, viés clássico… há um pouco de tudo nesta preciosa meia dúzia de paraibanos geniais.
Procurando um diálogo direto com um público mais amplo, sem perder suas características de forte regionalidade, “Beiço de Estrada”, de Eliézer Rolim, apoia-se na figura icônica da atriz Darlene Glória para contar uma história sobre decadência. Nos anos 1970, o governo militar brasileiro inaugura a Transamazônica, o que faz minguar vilarejos e povoados que se valiam de pequenas vias secundárias para sobreviver. O poeirento bar/boteco/puteiro Beiço de Estrada é o símbolo deste Brasil que perece à sombra deste suposto progresso: isolado e quase sem vida, ele busca seu último suspiro através da patética ex-prostituta vivida por Darlene, sua jovem e virgem neta Conceição, e um menino bastardo abandonado pelo pai, não por acaso, o prefeito do lugar. Este minúsculo e frágil núcleo familiar é desequilibrado pela presença de um homem que usa poesia romântica e rusticidade (Jackson Antunes) como armas de conquista para a sedução da encantadora Conceição. “Beiço de Estrada” é o segundo longa de Rolim, realizado oito anos após “O Sonho de Inacim”.
De estilo mais hermético e poético, “Estrangeiro”, de Edson Lemos Akatoy, utiliza uma belíssima fotografia em preto e branco como moldura de uma intrigante história de traumas e desencontros. Fragmentando o tempo linear, o longa cria um mosaico de lembranças esparsas da protagonista Elisabete, que aproveita o imprevisto de um voo atrasado para revisitar a casa onde passou a infância e a adolescência, na praia de Tabatinga. Ali, ela tem algum espaço e algum tempo para repensar momentos que foram decisivos em sua vida, enquanto o espectador busca compor o fascinante quebra-cabeças de sons, imagens e sensações proposto por Akatoy.
Na área documental, “O Seu Amor de Volta (Mesmo que ele não Queira)”, de Bertrand Lira, tem como ponto de partida a atual proliferação das propagandas de médiuns, videntes e sensitivos que prometem a “amarração” de casos amorosos. O título do longa, que pode até sugerir um recorte cômico ou lúdico, na realidade surpreende com uma profunda investigação de quatro personagens envolvidos na questão do “amor de volta”. E é simplesmente impressionante o respeito e a afetuosidade com que Lira trata seus personagens. Olhos brilhantes, vozes embargadas e expressões da mais profunda dor compõem este pungente universo de almas sofredoras que desejam revivenciar seus ex amores e paixões mesmo com a total consciência que tais voltas poderão trazer mais sofrimentos que prazeres. A posse e – por que não – a vingança acabam assumindo proporções mais urgentes que a própria felicidade, num cruel e complicado jogo de emoções contraditórias que o filme capta com absoluto louvor.
A sublimação do sofrimento também é tema de “Rebento”, longa de estreia de André Morais. A profunda dor da perda de um filho faz com que a protagonista abandone sua terra, sua casa e provavelmente sua própria sanidade para embrenhar-se por uma jornada solitária pelo sertão nordestino. Em sua via crucis de penitência, ela encontra pessoas que a acolhem, paisagens que a redefinem, ao mesmo tempo em que não hesita em trocar de identidade e de história a cada novo encontro. Um plano de quase 11 minutos de duração envolvendo cerca de dez personagens já pode ser considerado antológico neste belo e sensível “Rebento”.
Já “Sol Alegria”, de Tavinho Teixeira, bebe em várias fontes do escracho e da comédia para criar um painel tragicômico-anárquico da atual situação brasileira. Após matar um corrupto pastor evangélico candidato a senador, uma família das mais disfuncionais foge para a comunidade que dá nome ao filme, formada por eróticas freiras guerrilheiras. Ali, tudo pode acontecer… como de fato acontece. Colcha de retalhos dos mais diversos temperos que compõem o nosso caldo cultural contemporâneo, “Sol Alegria” evoca desde os “Maus Hábitos” almodovarianos até o desbunde do Cinema Marginal dos anos 60, passando pelas cores do Tropicalismo, para contextualizar a loucura de um país que jamais será sério. Com direito a fuga pela barreira policial no melhor estilo “Terra em Transe”. “Luzeiro Volante” (2011) e “Batguano” (2014) são os longas anteriores do diretor.
Finalizando, “Ambiente Familiar”, de Torquato Joel, costura com primor as imagens fragmentadas das lembranças afetivas de três rapazes – Alex, Fagner e Diógenes – que vivenciaram diferentes conflitos relacionados às suas sexualidades para, a partir deles, reinventarem suas estruturas familiares dentro de um novo contexto de vida. O rigor técnico dos enquadramentos e o apuro sempre irrepreensível da fotografia – elementos constantes da obra do premiado diretor – ganham neste longa potencialidades ainda mais expansivas, elevando esta (a)mostra do Cinema Paraibano dentro do Fest Aruanda a padrões de excelência dignos de todo o nosso aplauso.
E as boas notícias não param por aí: no evento, foram prometidas mais sete produções paraibanas, já em adiantadas fases de produção e/ou finalização, para a edição de 2019. Isso, se ainda restar algum Brasil em 2019. É resistir para ver.
* Celso Sabadin foi membro do Júri Abraccine no 13º Fest Aruanda, em João Pessoa.