“Reforma”: prazeres e desconfortos de um corpo gordo

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Bella Valle*

Riscos e indicações sobre papel e sobre paredes. Flávia inicia uma reforma no seu novo apartamento e pede ajuda ao amigo Francisco com a pintura. Os diálogos nos dão outras indicações: Moacir, marido de Flávia, viajou a trabalho e a deixou sozinha em plena mudança, que foi, vale destacar, ideia dele. “Mainha pelo menos ficou com os meninos”, comenta a moça. O amigo a consola e diz que seu novo apartamento é um futuro “palacete”. Narrativa devidamente contextualizada: o mundo da normalidade contemporânea ainda segue funcionando a partir das estruturas da heteronormatividade patriarcal. Porém, na verdade, o protagonista da trama é Francisco. Interpretado por Fábio Leal, diretor do filme, ele não anda bem: se sente gordo demais e isso desencadeia uma série de paranoias no rapaz. Enquanto ajuda na reforma da amiga, ele narra algumas experiências cotidianas.

O discurso visual do curta-metragem é muito conduzido através dos corpos masculinos de Francisco e de seus parceiros sexuais. O jogo de espelhos nos enquadramentos, as luzes suaves, sem grandes contrastes (mesmo nos contraluzes), e os planos médios intercalados com detalhes levam o olhar do espectador de forma precisa às camadas subjetivas do personagem. A fotografia de Maira Iabrudi traz leveza à narrativa e aproxima, naturaliza as questões vividas por Francisco, promovendo uma identificação empática, mesmo nas cenas mais intensas de sexo. Os diálogos demarcam mais claramente a narrativa dramática, mas, regados de gracinhas, também aliviam o peso do dilema para quem assiste ao filme, apesar de não aliviar a carga do paradoxo vivido pelo personagem.

Francisco diz que queria que as pessoas gostassem dele do jeito que ele é. Mas, pelo que vemos, as pessoas que se relacionam com o nosso herói não parecem ter nenhum problema com a gordura do seu corpo. É o espelho o traidor: como ficar em paz consigo mesmo, quando algo te diz que há um desencaixe da normalidade (aquela mesma das estruturas da heteronormatividade patriarcal)?

Dos pelos raspados soprados pela janela à analogia das estrias com as ondas do mar – “que onda! Que onda!”, canta Caetano para Francisco  durante o banho –, há poesia nisso tudo? Do gozo acumulado no umbigo e o ossinho do quadril ao shampoo que exige certo esforço para sair do pote e a blusa que não veste bem. Cotidiano. Gorduras, pelos, estrias: indesejados por quem?

E quando entramos nas profundezas do drama poético e mal resolvido (mas sexualmente bem servido) de Francisco, vem Flávia com choques rasos de realidade. Um zoom out da parede para a vida: “tu não me leva a mal, não, mas…”. Flávia olha nos olhos, direto para a câmera subjetiva de Francisco, e nos lança mais questionamentos: amor bom é o que volta? Mas quem quer que volte? Sem dispersões, Flávia, este filme não é sobre relacionamentos.

Os “boys” não são, de fato, a maior preocupação de Francisco (nem de Fábio). São só pretexto. É que falta assunto, como ele mesmo diz, enquanto há tamanho mal-estar com o próprio corpo gordo e resistente às dietas e academias opressoras. Onde mora o prazer e o desconforto? Há piada na cafonice utópica romântica? E o amor próprio, em que medida entra? O que você mais queria ter: o ilíaco à mostra ou um pote de sorvete? É na performance que fazemos com nossos corpos nus, gordos ou magros, lisos ou cheio de marcas e pelos, ao rebolar e cantar sob as águas correntes do chuveiro, que nos acolhemos a nós mesmos.

Fábio consegue fazer um filme intenso e leve ao mesmo tempo. Assim como no seu curta anterior, O porteiro do dia (2017), ele mistura cenas engraçadas e pintosas ao drama denso que seus personagens vivem, complexificando o imaginário audiovisual do universo gay, mas também das relações afetivo-sexuais como um todo, e da nudez sem tabus, objetificações nem sacralizações. É, portanto, também político na desconstrução da mesma heteronormatividade patriarcal. Não por acaso a arte do filme fica por conta de André Antônio, integrante do coletivo Surto e Deslumbramento, também baseado no Recife, onde há um movimento cinematográfico forte caminhando nesse sentido.

Ao fim, Flávia pergunta a Francisco: “tu tá feliz assim?”. Aquele olhar que queria dizer alguma coisa e não disse, talvez, pedia justamente esta questão. O filme é sobre felicidade. Aquela que cabe no ver-se no espelho, mas também no cantar com a colher do sorvete ao assistir um musical sozinho na cama. A reforma, cheia de riscos e indicações, também cabe em um colar de energia intocável. Cabe em proteger-se e acolher-se. A música do final, “I say a little prayer”, não deve ser vista sob uma ótica romântica. Ele canta para si mesmo.

* Bella Valle foi membro do Júri Abraccine no 13º Fest Aruanda, em João Pessoa.

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