Stephania Amaral*
Os longas da Mostra Competitiva selecionados pela curadoria do Festival Olhar de Cinema têm em comum o valor à diversidade dos corpos retratados, que em alguma medida lidam com isolamento ou invisibilidade social. O roteiro de Um filme dramático, de Eric Baudelaire, foi elaborado em conjunto por crianças francesas que contam sua rotina, levantam questões políticas e filosóficas sobre capitalismo, linguagem e evocam a intolerância com imigrantes, tema também presente em outros filmes da Mostra. Na cabine de exibição, de Ra’anan Alexandrowicz, mais do que o proposto exercício metalinguístico de observação de vídeos de conflito entre Israel e Palestina, instiga a refletir se o espectador apenas confirma crenças enraizadas, especialmente políticas, ou se pode mudar seu ponto de vista quando exposto e afetado por projeções de imagens quase sempre manipuladas.
A metamorfose dos pássaros permitiu à diretora portuguesa Catarina Vasconcelos trabalhar o luto da mãe entre nostalgia e sonho a partir de memórias de infância, captadas nos closes em objetos, fotografias de família e recordações antigas, como coleções de dentes, de selos e penas de pavão enumeradas. A solidão conecta a vivência distante de um marujo em alto mar e a saudade da família que espera por ele. Luz nos Trópicos, de Paula Gaitán, em seus ambiciosos 260 minutos, transita entre contextos contemporâneos e de outras épocas longínquas. A força do filme está na beleza das paisagens naturais e no retorno de um dos personagens centrais, vivido por Begê Muniz, da vida cosmopolita para suas origens indígenas no Pantanal. De forma semelhante, em Longa Noite, de Eloy Enciso, Anxo ou “O Retornado” (Misha Bies Golas) regressa como um filho pródigo para sua terra pós Guerra Civil Espanhola. As memórias evocadas pelo protagonista não são nostálgicas, mas dolorosas, o que o leva à reclusão.
Victoria, das diretoras Sofie Benoot, Liesbeth De Ceulaer e Isabelle Tollenaere, ajuda a ter perspectiva a partir de vivências inscritas na história da cidade homônima em construção no deserto de Mojave. A imersão no filme possibilita tempo para contemplação durante o longo trajeto de caminhadas com o protagonista Lashay, sobrevivente do sistema, que reafirma sua individualidade em um movimento documental de valorização de rastros e registros. Porém o documentário mais eficaz em linguagem e abordagem da Mostra foi o nacional Entre nós talvez estejam multidões, de Pedro Maia de Brito e Ariano Benfica. Realizado às vésperas da ameaça fascista nas eleições 2018, acompanha a resistência na Ocupação Eliana Silva, onde os moradores dialogam sobre militância, coletividade e amor. As diversidades culturais são reforçadas nas apresentações musicais, de funk a Elza Soares.
No filme vencedor do Prêmio da Crítica do Júri Abraccine, Los Lobos, do diretor mexicano Samuel Kishi, Max (Maximiliano Nájar Márquez) e Leo (Leonardo Nájar Márquez) são dois irmãos de 8 e 5 anos que emigram para os EUA e passam os dias confinados em um precário apartamento alugado. O sonho deles é conhecer a Disney, o que os motiva a aprender inglês e a respeitar regras de conduta ditadas pela mãe, Lucía (Martha Reyes Arias), que trabalha o dia todo fora de casa. As pessoas comuns (não atores) que quebram a quarta parede encarando a câmera ao longo da projeção nos fazem pensar como as histórias se repetem e se assemelham às de tantos povos marginalizados. O que faz de Los Lobos inesquecível é a simplicidade e a potência da trama, as atuações fortes e uma fotografia e trilha sonora aliadas à construção da memória e da imaginação como formas de sobrevivência e resistência.
Outro longa que preza pela simplicidade mas trabalha as minúcias cotidianas de forma poética e primorosa é Nasir, de Arun Karthick. Muito silencioso e inventivo, valoriza a beleza nas coisas triviais, como o café, a música e a reza para enfrentar a vida prática que se impõe ao protagonista muçulmano em situação econômica de vulnerabilidade. Na loja em que ele trabalha vendendo tecidos, há sincretismo nas vitrines, rituais de limpeza que rompem com estereótipos xenófobos a respeito da Índia e manequins quebradas que ganham vida em meio a colares de flores. Enquanto todos participam de chamadas de vídeo, Nasir ainda escreve cartas de amor e pergunta: “O que é a vida senão solidão e silêncio?”. O desfecho brutal contrasta com toda a quietude do filme, com uma estrutura narrativa que em muito faz lembrar a letra de “Construção” do Chico Buarque, outro eco de revolta contra a insistência desumana na intolerância ao diferente.
* Stephania Amaral foi do Júri Abraccine no 9º Olhar de Cinema